Barra
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Por — Rio de Janeiro

A celebração do patrimônio afrobrasileiro e a luta por uma vida com dignidade são causas defendidas, diariamente, pelo movimento negro, e reforçadas no Dia da Consciência Negra. No mês em que se celebra a data, um artista plástico afrodescendente de 57 anos festeja o seu primeiro ano de cidadania plena depois de muito tempo.

Após mais de uma década vivendo em situação de rua, entre 2011 e 2022, período em que descobriu sua vocação, Marcelo Conceição, hoje, consegue viver das esculturas que produz. As obras são confeccionadas com materiais recicláveis, como madeira, papel, rolha, bambu, ferro e vidro. Novembro marca ainda o reconhecimento de seu talento, já que o escultor inaugurou no sábado (18) sua primeira exposição individual, no Museu do Pontal, na Barra, intitulada “Deslocamentos e travessias”. Com cerca de cem peças, a mostra gratuita fica em cartaz até março.

— Essa exposição vai ser muito marcante. Não apenas para mim, mas para o público também. Vai levar as pessoas a refletirem como alguém na minha condição conseguiu produzir esse tipo de trabalho. A ideia é mostrar que, na verdade, a arte me abraçou e passou a me reger, em meio à tragédia que é viver nas ruas. Vai ser um impacto muito grande; algumas pessoas vão até chorar — prevê Conceição. — Toda vez que participo de uma exposição, fico nervoso, sempre na expectativa para que dê tudo certo. Acho que mesmo depois da décima mostra vou agir do mesmo jeito, porque é tudo muito novo para mim.

Obra de Marcelo Conceição feita com itens como madeira, linha, ferro e papel — Foto: Divulgação/ Lucas Van de Beuque
Obra de Marcelo Conceição feita com itens como madeira, linha, ferro e papel — Foto: Divulgação/ Lucas Van de Beuque

O escultor descobriu o dom e a paixão pela arte aos 50 anos, após transformar um caixote descartado num oratório e conseguir vender a peça para uma mulher nas proximidades da estação de metrô do Largo da Carioca, onde costumava dormir. Desde então, não parou mais de aproveitar resíduos encontrados nas ruas e feiras do Centro e da Zona Sul como matéria-prima para suas obras. A destreza com as mãos logo levou as pessoas a classificarem-no como artista, mas ele não se sentia à altura do título e, internamente, recusava-o.

— Foi muito doloroso o processo para me enxergar como um artista, que, para mim, tem que viver como tal, não é só carregar o nome. Ou seja, tem que ter uma vida digna. Eu me perguntava: "Como posso ser artista se fico sujo, sem comer e sem direção?". Embora continue meio na dúvida, hoje aceito que sou artista, porque entendo que minha formação foi natural, enquanto há quem vá para uma escola para aprimorar o talento — diz.

Obra de Marcelo Conceição feita com varetas, linha e rolhas — Foto: Divulgação/Andrea Capella
Obra de Marcelo Conceição feita com varetas, linha e rolhas — Foto: Divulgação/Andrea Capella

Esta é a terceira exposição de Conceição no Rio. A primeira foi no Museu Janete Costa, em Niterói, em novembro do ano passado, dias após deixar as ruas. Já a segunda foi na Galeria Pé de Boi, em Laranjeiras, em abril. O artista não passa um dia sequer sem produzir. Chega a desenvolver até cinco esculturas diariamente. Como ele vende todas as obras que confecciona, as peças que vão para as mostras são de colecionadores e galeristas que as adquiriram e as emprestam para os eventos.

— Quando olho um material, logo tenho a ideia do que vou fazer com ele. Minha inspiração vem assim. Por incrível que pareça, meu trabalho não tem nenhuma referência. Sou capaz de sentar diante de qualquer pessoa e produzir qualquer coisa sem ter planejado antes, porque não sigo nenhum conceito fixo. Isso é um presente. Nenhuma peça minha se parece com outra — explica o artista.

Com uma infância marcada pela necessidade de trabalhar, relegando a escola a segundo plano, Marcelo Conceição estudou apenas até a segunda série do ensino fundamental. Após ver sua casa soterrada durante um temporal que atingiu o Morro do Bumba, em Niterói, em 2010, e perder um irmão e um sobrinho na tragédia, resolveu, por opção, ir viver nas ruas. Longe das quatro paredes, era onde se sentia mais livre e seguro, justifica. Hoje, vive em um apartamento alugado em Niterói, pago com a renda de suas obras.

Marcelo Conceição deixou as ruas há pouco mais de um ano — Foto: Leo Martins/27-04-2023
Marcelo Conceição deixou as ruas há pouco mais de um ano — Foto: Leo Martins/27-04-2023

— Para mim, a arte é muito importante, porque cura, realiza, transforma, capacita, dá emprego, felicidade e amor. Quem sabe amar é também um grande artista — sentencia. — A arte é tão poderosa que de uns anos para cá os manicômios passaram a usá-la para tratar os internos.

A mostra “Marcelo Conceição: deslocamentos e travessias” está dividida em quatro setores. O primeiro abriga obras de grande porte, remetendo a prédios e construções presentes nas metrópoles. O segundo retrata a religiosidade, mostrando a influência da matriz africana na vida do artista. O terceiro, no qual será exibido um vídeo em que ele conta sua história, tem uma instalação com peças feitas de varetas e linhas. Já na quarta, o destaque são montagens, colagens e objetos que lembram instrumentos musicais e barcos.

Foram selecionadas obras criadas a partir de 2017. O critério foi mostrar a trajetória de Conceição e a abrangência de seu trabalho, conta o cenógrafo Jorge Mendes, curador da exposição.

— A exposição remete muito à temática do urbano; por isso, “Deslocamentos e travessias”. Ele nasceu em Niterói e se deslocava para o Rio de barca e pela Ponte — destaca Mendes. — A arte de Marcelo Conceição é abstrata; há muitas figuras geométricas. E ele consegue algo inacreditável, que é alcançar vários segmentos. Hoje, se você for à Fundação Getulio Vargas, vai ver obras dele ao lado de grandes artistas contemporâneos. E impressiona como ele se aproxima de outros artistas sem nunca tê-los conhecido, já que a primeira vez que pisou num museu foi para expor. Suas obras lembram as de escultores como Nhô Cabloco, Bispo do Rosário e Farnese Andrade, mas são únicas e pessoais. Ele não sofreu influência do trabalho deles. Hoje, conhece esses artistas de nome.

Marcelo Conceição produz esculturas a partir de resíduos encontrados nas ruas e em feiras — Foto: Divulgação
Marcelo Conceição produz esculturas a partir de resíduos encontrados nas ruas e em feiras — Foto: Divulgação

De acordo com estimativa do curador, Conceição tem mais de quatro mil peças espalhadas em galerias e com colecionadores.

— É muito mágico o processo de produção. Parece que tudo obedece. Parece que varetas e linhas, por exemplo, vão tomando forma sem que ele se dê conta de como aquilo aconteceu. Acho que isso explica sua ascensão meteórica. Tudo aconteceu em um ano — observa. — Num mundo cada vez mais preocupado com o consumo consciente em prol do meio ambiente, é fundamental o papel de um artista que transforma resíduos em arte.

Outros eventos

A programação que evidencia a potência cultural negra não para por aí. Neste domingo, o Museu do Pontal promove uma oficina de capoeira e danças populares, com os mestres Feinho e Manoel e o Coletivo Ondas do Mar.

Roda de capoeira: atração faz parte da agenda deste domingo do Museu do Pontal — Foto: Divulgação
Roda de capoeira: atração faz parte da agenda deste domingo do Museu do Pontal — Foto: Divulgação

A Cidade das Artes apresenta, neste domingo (19), às 20h, e na segunda-feira (20), às 19h, o monólogo "Ninguém sabe meu nome". Com idealização e interpretação de Ana Carbatti, o espetáculo reflete sobre racismo estrutural, seus impactos e possíveis propostas de reparação. A trama conta a história de uma mãe, Iara, que precisa educar e preparar seu filho para sobreviver nesse contexto. Os ingressos estão à venda na Sympla, a R$ 60.

— Durante a pandemia, fiquei consumida pela literatura de James Baldwin, Beatriz Nascimento, Abdias Nascimento e Angela Davis, entre outros pensadores e ativistas dos movimentos antirracistas das décadas de 1960 e 1970. Queria falar em voz alta aquelas coisas incríveis que eles escreveram. Assim, olhando para o meu filho, que crescia latejando uma energia de felicidade, entendi o caminho para transformar a literatura em teatro — conta a atriz. — O Brasil vive, há mais de 400 anos, uma guerra silenciosa contra os corpos pretos. São jovens negros e negras que morrem todos os anos em percentuais desumanos, vítimas de uma violência que nem o Estado, nem a sociedade querem olhar de frente. A necessidade desse debate é para ontem.

Ana Carbatti: atriz é estrela de monólogo sobre racismo estrutural e seus impactos, na Cidade  das Artes — Foto: Divulgação/Renato Mangolin
Ana Carbatti: atriz é estrela de monólogo sobre racismo estrutural e seus impactos, na Cidade das Artes — Foto: Divulgação/Renato Mangolin

O local terá ainda atrações gratuitas, como o lançamento do livro “Seu João”, do carioca Filipi Gradim, que trata de uma jongueira e a sua relação de carinho com os convidados das rodas de jongo, neste domingo, às 15h, e a Orquestra Sinfônica Brasileira Jovem, com a participação de duas cantoras do Jongo da Serrinha, Lazir Sinval e Dely Monteiro, na segunda-feira (20), às 16h. Em seguida, às 17h30, um show em homenagem aos 60 anos do Jongo da Serrinha encerrará a agenda.

Valdeir Valença fará tributo a Emílio Santiago — Foto: Divulgação
Valdeir Valença fará tributo a Emílio Santiago — Foto: Divulgação

No próximo sábado (25), às 21h, o Teatro Del'Art, no Barra Point, será palco do show “Emílio Santiago: 10 anos de saudade", em homenagem a um dos maiores intérpretes da MPB, que morreu em 2013, com o cantor Valdeir Valença e do grupo Bate Papo. No repertório, sucessos como “Saigon”, “Verdade chinesa” e “Logo agora”.

— Lamento muito por não ter tido a oportunidade de conhecer Emílio Santiago pessoalmente, mas cresci ouvindo todos os seus discos, principalmente a série “Aquarelas”, que era o LP mais tocado em todas as festas do subúrbio próximo à minha casa, em Cordovil. Desde criança, me sentava ao lado do meu falecido para ouvir boa música, e a voz de Santiago já me encantava — relata Valença.

Já o Quilombo Aquilah promoverá hoje uma roda de samba com a presença de Tia Surica, da Portela. Uma feijoada e apresentações de jongo, capoeira e coco de roda dos artistas pretos do território também movimentam o dia, além de um baile de charme e hip-hop, no Centro Cultural Dyla Silvia.

— A cada 20 de novembro, lembramos e festejamos o Dia de Zumbi, esse grande líder quilombola. Infelizmente, ainda precisamos lutar contra o racismo e pela igualdade. Destaco a importância dessa data para todos nós, descendentes de escravizados, para homenagear as lideranças quilombolas, abolicionistas e do movimento social antirracista. Celebramos a data ao mesmo tempo em que resistimos a todo tipo de opressão. Nosso país deve se orgulhar do quanto nossa gente preta foi e é importante no seu processo de construção — ressalta Hosania Nascimento, coordenadora do Ponto de Cultura Quilombo Aquilah.

Confira a programação

Museu do Pontal

  • “Marcelo Conceição: deslocamentos e travessias”: Exposição gratuita até março, de quinta a domingo, das 10h às 17h30.
  • Oficina de capoeira e de danças populares: neste domingo (19), às 16h, com os mestres Feinho e Manoel e o Coletivo Ondas do Mar.

Cidade das Artes

  • “Ninguém sabe meu nome”: Peça com Ana Carbatti, neste domingo (19), às 20h, e amanhã, às 19h. R$ 60.
  • “Seu João”: Lançamento do livro de Filipe Gradim, sobre jongo, neste domingo (19), às 15h.
  • Orquestra Sinfônica Brasileira Jovem: Com participação de Lazir Sinval e Dely Monteiro, do Jongo da Serrinha, na segunda-feira (20), às 16h,
  • Jongo da Serrinha: Show na segunda-feira (20), às 17h30.

Teatro Del'Art (Barra Point)

  • “Emílio Santiago: 10 anos de saudade”: Homenagem ao intérprete de MPB, dia 25, às 21. R$ 80.

Quilombo Aquilah

  • Roda de samba: Com Tia Surica, feijoada e apresentações de jongo, capoeira e coco de roda, além de baile charme no Centro Cultural Dyla Silvia, neste domingo (19), entre 11h e 18h.

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