Rio Bairros

Livro constrói guia afetivo do Rio a partir dos caminhos feitos por Clarice Lispector

'O Rio de Clarice' é escrito por Teresa Montero: 'Sinto que tenho um vínculo espiritual com ela'
Teresa Montero ao lado da estátua de Clarice Lispector, no Leme. Foto: Daniel Ramalho / Divulgação
Teresa Montero ao lado da estátua de Clarice Lispector, no Leme. Foto: Daniel Ramalho / Divulgação

RIO — Mais de 40 anos após sua morte, Clarice Lispector permanece um mistério. E o tempo o torna mais agudo, é verdade. A investigação subjetiva da vida talvez tenha contribuído para a imagem de escritora circunspecta, eventualmente arredia. “O Rio de Clarice” não retira dela o véu enigmático, mas indica que a mulher das palavras era também a mulher da cidade, especialmente conectada à natureza. A tentativa do livro da Editora Autêntica é torná-la solar, embora a foto de capa — na praia, com maiô, pernas à mostra e óculos escuros, ideal para esse fim — amplie também a sensação de que, sobre ela, há sempre algo a ser descoberto.

— O que ela diz não tem época nem fronteira. Clarice vai no ponto crucial das coisas, do ser humano. Nunca perdi a sensação de ler e perceber que poderia estar dizendo aquilo. Ela empresta a voz aos outros, faz isso de maneira belíssima, com uma forma de dizer única — ressalta Teresa Montero ao explicar o fascínio cultivado em torno da escritora.

Dizer que Teresa é autora deste livro é muito pouco. Desde 1990, quando decidiu escrever uma biografia sobre Clarice — lançada nove anos depois, enfim —, uma se entrelaçou à vida-obra da outra. Não por acaso, até mesmo os amigos mais próximos, por vezes, a confundem com a autora de clássicos como “Perto do coração selvagem” (1943).

— De tanto conversar sobre ela, me chamam às vezes de Clarice. Meu assunto predileto, minha fala era sempre Clarice. Num momento, passou a me incomodar. Mas entendi que não iria me afastar disso. Encaro como uma missão. Sinto que tenho um vínculo espiritual com ela. Ela morreu no Hospital da Lagoa, o mesmo em que nasci. Será que é uma coincidência? — instiga a escritora.

Ainda que lamente não tê-la conhecido, Teresa entende que essa ausência talvez a tenha motivado a desbravar o farto território clariciano. “O Rio de Clarice”, por exemplo, é o desdobramento do passeio de mesmo nome que ela organiza há dez anos. Nele, guia um grupo por ruas onde a escritora morou, passou, experimentou breves e extensos momentos. Em parte, são locais transformados pelo toque de sua presença, cujo rastro pode ser agora imaginado.

“Morou neste prédio de 1966 a 1977” informa a placa do Edifício Macedo, no Leme, bairro onde viveu por 18 anos. É lá também que foi inaugurada a estátua em homenagem à escritora e, adivinhe, onde mora Teresa.

— O texto da Clarice é intimista. Ela não está preocupada em delimitar lugares. A cidade não está explicitamente na obra dela, mas ela dialoga e se apropria muito mais da atmosfera. Ficou claro na pesquisa que Clarice se sentia atraída por lugares com natureza: o Parque Lage, o Jardim Botânico, o Largo do Boticário eram os prediletos. O caminhar dela é muito em função do que a inspirava — explica.

Assim, o livro explora sete caminhos de Clarice, passando também por Tijuca, Cosme Velho, Catete, Centro e Botafogo. Desbravar os mesmos possíveis percursos feitos décadas atrás por ela provocou uma transformação em Teresa, um movimento que nasceu na literatura, mas o extrapola.

— Antes do passeio, eu era apenas uma leitora, não tinha percepção da cidade. Hoje, sou outra pessoa caminhando pelo Rio, muito mais atenta. Observo os prédios, o clima do bairro, se estão bem cuidados ou não. Para mim, funciona como uma pedagogia dos sentidos — salienta.

Como não poderia deixar de ser, muitos dos próximos passos de Teresa seguirão a estrada ladrilhada por Clarice. Entre as iniciativas, ela deseja reeditar “Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector”, já esgotada, e criar “O Recife de Clarice” — a capital de Pernambuco abriga a infância da escritora. Após um hiato de meses, Teresa também planeja voltar com os passeios em dezembro, mês de nascimento e morte de Clarice.

— O livro e o passeio são também maneiras de olhar para o Rio de forma mais amorosa. Tem uma preocupação de cidadania. Como professora, passei a me perguntar por que não posso dar aula nas ruas. “O Rio de Clarice” nasce também dessa inquietação. É uma injeção de memória — completa Teresa, em comunhão com as primeiras palavras do livro “A hora da estrela” (1977): “Tudo na vida começou com um sim”.

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