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'Nossa leis são muito condescendentes com o crime', diz Glória Perez

Às vésperas de estreia de podcast sobre justiça e com série sobre Daniella Perez em produção, novelista critica impunidade no país
Glória Perez, ao lado da filha Daniella: "Não há justiça em crime de homicídio" Foto: Arquivo pessoal
Glória Perez, ao lado da filha Daniella: "Não há justiça em crime de homicídio" Foto: Arquivo pessoal

Justiça e vingança são a mesma coisa? O que fazer com alguém que cometeu um crime hediondo? Nossa ideia de justiça está nos atendendo? Afinal de contas, o que é justiça? Estas e outras perguntas serão debatidas em "Crime e Castigo", novo podcast da Rádio Novelo que estreia neste sábado nas plataformas digitais. Dividido em seis episódios e narrado pela linguista Branca Vianna, do premiado "Praia dos Ossos",  o novo podcast visita agora o caso de um filho assassinado, um feminicídio e até uma briga de vizinhos. Tudo para discutir temas como justiça, reparação, vingança, crime e punição.

Em entrevista ao blog do jornalista Ancelmo Gois, no GLOBO, Branca Vianna explicou o motivo de fazer o podcast sobre justiça.

— Muita gente achou pouca a condenação de Doca a 15 anos de prisão e questionou a justiça no Brasil. A partir daí, resolvemos fazer uma nova série sobre justiça, reparação, vingança, crime e punição — disse Branca Vianna, se referindo ao assassinato da atriz Ângela Diniz em 1976 por Doca Street, em Búzios, tema do "Praia dos Ossos".

Podcast "Crime e Castigo", da Rádio Novelo, estreia dia 2 de abril Foto: Divulgação
Podcast "Crime e Castigo", da Rádio Novelo, estreia dia 2 de abril Foto: Divulgação

A carioca assina com Flora Thomson-DeVeaux e Paula  Scarpin a produção de "Crime e Castigo''. Já a série documental Daniella Perez, em produção pela HBO Max, se debruçará sobre o assassinato da atriz e bailarina, no dia 28 de dezembro de 1992, na Barra da Tijuca. Em cinco episódios, a série abordará, no ano em que se completam 30 anos do crime, a luta da novelista e mãe da atriz  por justiça.

— Nossas leis são muito condescendentes com o crime, e isso fica muito evidente nos crimes de homicídio. Por mais alta que seja uma sentença, ela praticamente se dissolve na aplicação da lei de execução penal. Quando conquistamos a emenda popular que incluiu o homicídio qualificado na lei dos crimes hediondos, que garantia um cumprimento maior da pena, logo se arranjaram maneiras de incluir benesses, de modo a tornar menos dura a aplicação dessa lei — critica Glória Perez.

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Segundo a novelista, não há justiça em crime de homicídio.

— Eu tive a justiça possível. Os dois assassinos, Guilherme de Pádua e Paula Peixoto (que, na época, assinava Thomaz), mesmo condenados por homicídio duplamente qualificado, cumpriram quase nada da pena na cadeia. O juiz deu 19 anos, porque, na época, se a sentença chegasse a 20, os réus tinham direito a novo julgamento. Então, por mais bárbaro que fosse o crime, os juízes costumavam fixar as sentenças em 19 anos e alguns meses. Cumpriram seis, sete, com todas as regalias possívels de comprar — lembra a mãe da atriz e bailarina.

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Aos 22 anos, a atriz Daniella Perez foi assassinada em um matagal na Barra da Tijuca pelo então colega de trabalho e ator Guilherme de Pádua, de 23 anos, e sua mulher, Paula Thomaz, de 19. Foram 18 punhaladas que perfuraram o pescoço, o pulmão e o coração da atriz, casada na época com o ator Raul Gazolla. Poucas horas após o crime, Guilherme e Paula foram à 16ª DP (Barra) abraçar e prestar "solidariedade" a Glória Perez. O casal acabou sendo descoberto, no mesmo dia, graças ao advogado aposentado Hugo da Silveira, que, ao passar próximo ao local do crime, anotou as placas dos carros da Daniella e Pádua estacionados em frente ao terreno baldio e as entregou à polícia.

O motivo do crime? Em 1992, Daniella protagonizava a novela "De corpo e alma", de Glória Perez, ao lado de Guilherme de Pádua. Segundo depoimentos, o ator a assediava e a pressionava a pedir à mãe para lhe devolver o papel de destaque na novela. Na época, Paula estava grávida de quatro meses de Pádua e tinha ciúmes das cenas apaixonadas na novela do ator com a atriz.Pelo homicídio qualificado por motivo torpe e utilizaçao de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, Guilherme foi condenado a 19 anos de prisão. Já Paula, por ser menor de 21 anos na época, foi condenada a 18 anos e 6 meses de reclusão. Ambos deixaram a prisão em 1999. Atualmente, Guilherme é pastor em uma igreja evangélica e mora em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ele e Paula se separaram e ela, a exemplo dele, se casou novamente. Paula se formou em Direito, adotou novo sobrenome e mora no Rio.

Até hoje, a família de Daniella trava embates nos tribunais com os dois.

— O processo civil continua correndo. Eles foram condenados a pagar indenização, esconderam os bens e declararam insolvência. Continuam os mesmos, tentando ludibriar e se esquivar da justiça.

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De acordo com a premiada Tatiana Issa, que assina a direção da série sobre Daniella Perez com Guto Barra, a produção debaterá "machismo, feminicídio e a fraqueza das leis brasileiras" , entre outros temas.

– Esse dia sempre será um dia tão triste, tão cruel, tão absurdo. Mais um ano que essa data nos lembra de tanta impunidade, ganância e horror... Que nos lembra o quanto as nossas leis são frágeis, brandas, questionáveis. E o quanto essa história não pode ser esquecida – disse Tatiana, em postagem no Instagram, em 29 de dezembro do ano passado.

Além da escritora Glória Perez, que cedeu a Tatiana seu arquivo pessoal sobre o crime, foram gravados depoimentos de Raul Gazolla, Marieta Severo, Cláudia Raia, Wolf Maya, além de feitas entrevistas com advogados e promotores que participaram do julgamento do casal, no 2º Tribunal do Júri, no Rio.

— A minha participação na série foi dar uma entrevista e ceder meu arquivo pessoal. Nunca tive a ideia de fazer documentários. Meu propósito foi sempre deixar um livro, e ainda vou escrevê-lo. Mas o assunto é público, e vi que o interesse das pessoas em tratar desse assunto crescia enquanto se aproximava essa data de 30 anos. Então, quando a Tatiana me procurou e que sua ideia era se ater aos autos do processo, confiei e cedi a ela cópias do processo, de reportagens e entrevistas gravadas — explica Glória.

Josimar Florêncio de Souza coleciona há quatro anos camisetas e canecas com fotos de Daniella Perez Foto: Arquivo pessoal
Josimar Florêncio de Souza coleciona há quatro anos camisetas e canecas com fotos de Daniella Perez Foto: Arquivo pessoal

'Me choca saber que eles estão livres', diz Josimar de Souza, que coleciona camisetas e canecas com a foto de Daniella

Apesar de ter 10 anos na época do crime, o maranhense Josimar Florêncio de Souza, torcedor do São Paulo, desde 2018 coleciona camisetas e canecas com fotos estampadas de Daniella Perez e, todos os anos, visita o túmulo da atriz, no Cemitério São João Batista, em Botafogo.

– Gostava muito dela e até hoje lamento a tragédia que aconteceu. Ela fazia um trabalho brilhante e tinha tantos anos pela frente, é muito triste. E ele (Guilherme de Pádua) não cumpriu nem a metade da sentença. Hoje está solto, livre, isso me choca. Não podemos deixar ela ser esquecida – defende o morador do Morro do Cantagalo de 40 anos, pai de duas filhas e que trabalha na academia de ginástica OX, no Leme, e em pizzaria em Ipanema.

Além de assistir a série e levar flores ao túmulo de Daniella no dia 28 de dezembro, Josimar faz questão de prestar solidariedade à mãe da atriz:

— Eu gostaria de conhecê-la e dizer que sinto muito mesmo pelo que aconteceu com a filha dela.

Ao saber dos gestos de Josimar, a  novelista também fez questão de agradecer o carinho dele por sua filha.

— Como me emociona ver que a Dani ficou assim, guardada e cuidada em tantos corações — diz Glória Perez sobre as coleções de Josimar.

*Estagiária, sob a supervisão de Ana Paula Araripe.

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