Tijuca e Zona Norte
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Por — Rio de Janeiro

Uma brisa suave corta o ar quente do Rio de Janeiro, trazendo consigo uma sensação de alívio e frescor. O cinza do asfalto abre espaço para o verde exuberante das árvores. Estamos na Rua São Miguel, próxima à Rua Conde do Bonfim e que marca o início do Complexo do Borel, onde Ana Márcia Rodrigues, conhecida como Tia Márcia do Borel, lidera há 25 anos um projeto de reflorestamento que transformou a paisagem urbana.

Ao adentrarmos a “minifloresta” na Horta Dja Guata Porã, cultivada pela indígena Niara do Sol na Aldeia Vertical, no Estácio, somos recebidos por uma sinfonia formada por sons naturais que deixam para trás as buzinas do trânsito intenso. Sua horta comunitária não só fornece alimentos frescos para os moradores locais, mas também promove a conexão com a natureza e a valorização das tradições indígenas.

Tia Márcia e Niara tornaram-se fontes de inspiração para o enredo do espetáculo “Mariposas amarillas”, com direção e dramaturgia de Inez Viana, que acaba de estrear no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto, no Humaitá, na Zona Sul da cidade. A peça, que retrata a história de outras seis mulheres, traz em cena seis atrizes e uma violoncelista.

Conversa entre Inez e Niara que serviu de base para a criação da peça — Foto: Divulgação
Conversa entre Inez e Niara que serviu de base para a criação da peça — Foto: Divulgação

Inez destaca que, em comum, essas mulheres compartilham a resiliência diante dos desafios. Tia Márcia, por meio de seu trabalho de reflorestamento, e Niara, com sua horta comunitária, representam o poder da determinação de transformar o ambiente urbano em espaços mais verdes e sustentáveis.

— Ano passado, tive oportunidade de passar horas conversando com essas mulheres incríveis, tentando entender um pouco mais sobre suas realidades e os desafios que enfrentam. O que descobri foi uma teia complexa de responsabilidades e sacrifícios, muitas vezes feitos sem reconhecimento. São mulheres cujo trabalho incansável molda o tecido social e ambiental de suas comunidades. Muitas delas operam nas sombras, sem alarde, mas com uma dedicação inabalável à coletividade. Essas mulheres são as verdadeiras heroínas de suas comunidades, trabalhando para tornar o mundo um lugar melhor para todos — reflete Inez.

Na peça, Tia Márcia é interpretada pela atriz e cantora Simone Mazzer, que também é a responsável por contar a trajetória de Niara. As duas líderes comunitárias estiveram presentes na pré-estreia do espetáculo e se emocionaram ao ver suas histórias ganharem vida no palco.

Para Tia Márcia, um momento em especial marcou sua experiência ao assistir à peça: a cena em que a atriz Simone Mazzer, interpretando-a, responde à pergunta sobre o paradeiro de seu marido. A resposta, dada com humor e sinceridade, trouxe à tona lembranças da vida de Tia Márcia.

— “Cadê o seu marido?”, e ela responde: “Ele pegou uma bicicleta e meteu o pé”. E foi exatamente o que aconteceu. Tudo o que estava retratado foi passando como um filme na minha cabeça. É indescritível ver sua história sendo contada em um palco — comenta Tia Márcia, que é mãe de quatro filhos e logo será avó pela quarta vez.

Niara e Tia Márcia se abraçam após assistirem a “Mariposas amarillas” — Foto: Divulgação
Niara e Tia Márcia se abraçam após assistirem a “Mariposas amarillas” — Foto: Divulgação

Nascida e criada no Complexo do Borel, Tia Márcia, de 56 anos, também tem ascendência indígena. Sua trajetória como líder comunitária começou em 1999, após deslizamentos de terra na comunidade que resultaram em tragédias para diversas famílias. Determinada a evitar novos desastres, ela liderou esforços para reflorestar as áreas afetadas, contando com a colaboração das vizinhas. O resultado foi a transformação do ambiente urbano, com o plantio de milhares de mudas, incluindo árvores frutíferas, e a promoção da conscientização sobre a importância da preservação ambiental.

— Por duas vezes, estive à frente junto com um grupo, a associação de moradores do Borel, e durante todo esse tempo tive a visão de encontrar maneiras inovadoras de ajudar os moradores, sem recursos, patrocínios ou apoio — relata Tia Márcia.

Entre suas muitas iniciativas, Tia Márcia destaca a criação de uma lavanderia comunitária, visando a melhorar as condições de vida das mulheres locais.

— As mulheres daqui lavavam roupa dentro do Rio Maracanã, o que me incomodava profundamente. Comecei com uma pequena máquina e, aos poucos, expandi o projeto —explica, acrescentando, orgulhosa, que hoje, três anos depois de sua criação, a lavanderia comunitária é um sucesso. — Já ganhou até prêmio.

Além disso, Tia Márcia lidera o Bazar Solidário, por meio do qual ajuda famílias carentes com doações de alimentos, roupas e calçados.

Seu trabalho incansável e sua dedicação à comunidade agora são oficialmente reconhecidos pela Secretaria municipal de Meio Ambiente e Clima, onde ela atua como encarregada de um grupo de mulheres no projeto Guardião das Matas, voltado para a preservação ambiental e o sustento das famílias locais.

Niara do Sol, aos 74 anos, carrega consigo um legado de conhecimento ancestral, enraizado nas tradições das etnias fulni-ô e kariri-xokó. Originária de Joaçaba, em Santa Catarina, em sua jornada ela passou por diversas regiões do Brasil e do exterior e se tornou uma incansável guardiã do saber tradicional sobre as plantas medicinais e a conexão entre o ser humano e a natureza.

No Rio de Janeiro desde 1982, Niara fez morada a partir de 2013 na Aldeia Vertical, no Estácio, um prédio que abriga 20 famílias. Lá, ergueu sua “minifloresta” comunitária, onde mais de 37 espécies de plantas medicinais florescem sob seus cuidados. Com sua sabedoria acumulada ao longo dos anos, Niara utiliza o que colhe em uma infinidade de receitas, desde xaropes para tosse até bolos e panquecas nutritivos. Entre as plantas medicinais que cultiva destacam-se a moringa, a ora-pro-nóbis e a chia, cujos benefícios para a saúde são amplamente reconhecidos.

Para Niara, a conexão com a terra é essencial, e sua horta não é apenas um lugar de cultivo, mas também um espaço de ensino e aprendizado. Ela compartilha com as crianças da comunidade e com quem tem interesse seus conhecimentos sobre agricultura sustentável, preparo de remédios naturais e preservação da cultura indígena.

Além disso, Niara ensina a confecção de sabonetes, máscaras faciais e massagens, tudo com ingredientes provenientes de sua própria horta, na qual há de tudo, de mamão a amora, de jenipapo a urucum.

— Eu não sou árvore para ficar em um lugar só. E onde eu vou, eu crio uma horta. Antes de limpar dentro da casa, eu limpo o lado de fora — brinca Niara. — Aqui são as crianças da comunidade que me ajudam. São 52 crianças que protegem a horta, e quem quiser pode se beneficiar dela; tudo é doado.

A Aldeia Vertical é também um centro de preservação cultural, com um museu que exibe artesanato e objetos de diversas etnias. O prédio abriga ainda a rádio indígena Yandê. Com produção e gravações no quinto andar, ela contribui para a disseminação da cultura e dos valores indígenas.

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