Este mês o Rio de Janeiro perdeu mais um de seus casarões históricos. Apesar dos protestos populares, que resultaram em um embargo temporário das obras de demolição a mando do prefeito Eduardo Paes, o palacete de 1915 que abrigou os restaurantes Maria Thereza Weiss e À Mineira, em Botafogo, veio abaixo para dar lugar a um edifício residencial. Para a historiadora Luciene Carris, embora, em nome do progresso, muitos capítulos da formação da cidade estejam sendo arrancados, há exemplos que provam que é possível escrever novos enredos sem apagar o passado. Luciana é autora do livro “Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na Zona Sul carioca”, publicado no ano passado e que aborda a demolição de um prédio histórico onde ela morou, naquele bairro.
Um dos casos de sucesso é o do Largo do Boticário, complexo colonial de casas no Cosme Velho, que foi revitalizado para se tornar parte da rede de hotéis francesa Accor, batizado de Jo&Joe e inaugurado há cerca de um mês. O trabalho de restauração do imóvel, tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), foi descrito em um livro publicado pela Accor este mês. Outro exemplo no mesmo bairro é o prédio ao lado do embarque do Corcovado, datado de 1882 e também tombado pelo Inepac, e que foi restaurado recentemente pela chocolateria Laguno, de Gramado (RS).
Já o restaurante La Fiorentina, inaugurado em 1957, no Leme, por pouco não se tornou uma agência bancária. O imóvel foi tombado como Patrimônio Cultural do Rio há cerca de um mês. Famosa não só por sua cozinha tradicional italiana, a casa ostenta, em seus 600 metros quadrados, colunas e paredes assinadas por personalidades diversas que marcaram épocas como Fernanda Montenegro, Pelé, Chico Buarque, Caetano Veloso e Erasmo Carlos. E foram justamente assinaturas de frequentadores que salvaram o restaurante, segundo o dono da marca, Omar Resende Peres. Ele conta que o estabelecimento foi tombado graças a um abaixo-assinado com três mil assinaturas.
— Em 1988, um incêndio destruiu muitas assinaturas e quase colocou um ponto final na história do La Fiorentina, mas, após dez anos fechado, eu o reabri, e ao longo dos anos fomos recebendo novas assinaturas, que hoje também já são históricas. O dono do imóvel queria transformar o espaço em um banco, mas com a ajuda de milhares de cariocas conseguimos mantê-lo — relata Peres.
Para a historiadora Luciene Carris, a exemplo do La Fiorentina, a preservação de um imóvel deveria ir além do seu valor arquitetônico e cultural, e levar em consideração a memória afetiva da população.
— Vejo com tristeza quando ocorrem essas demolições, pois são prédios que fazem parte da história da cidade e da memória afetiva dos moradores. E isso vem ocorrendo em vários lugares do Rio. Pensamos nessas construções como uma unidade material, que preserva as memórias coletivas de uma comunidade. Elas nos dão a noção de pertencimento, de onde viemos, como sujeitos da História. Os moradores precisam ser ouvidos. O retrofit (revitalização de edifícios históricos sem comprometer a memória) é uma forma de preservar o patrimônio e pensar na questão socioambiental que se apresenta —reflete a historiadora.
Fernanda Carvalho, especialista em Legalização da Mozak, construtora que atua viabilizando e recuperando imóveis preservados ou tombados, explica que obras em imóveis históricos demandam mais tempo de análise e projeto, uma vez que é necessário realizar um levantamento arquitetônico e prospecção da estrutura e fundação existentes para entender se o projeto é viável. Também é necessário que uma equipe de restauro acompanhe o desenvolvimento desde o início validando e propondo soluções para a edificação. No entanto, a profissional ressalta que vale a pena e os benefícios são muitos.
Entre as vantagens do retrofit para a comunidade, Fernanda Carvalho destaca que a população passa a enxergar o local e compreender sua importância cultural e arquitetônica. Além do apelo sustentável de se recuperar um imóvel abandonado, gerando menos resíduos e reutilizando solo urbano em áreas já com infraestrutura.
— Percebemos também a ocupação de pessoas e comércios gerando movimento e vida para o local. A Mozak está focada na Zona Sul, área urbana totalmente consolidada, com infraestrutura e poucos vazios urbanos. Diante dessa adversidade, acabamos nos especializando em edificações preservadas ou tombadas. São imóveis bem localizados, em áreas valorizadas e com potencial construtivo — diz ela.
Entre os projetos de retrofit assinados pela Mozak está o complexo Guilhermina, no Leblon, que reúne marcas autorais de moda, design e gastronomia. O empreendimento, inaugurado em 2021, está localizado em um imóvel preservado, no terreno onde funcionou por 48 anos o colégio St. Patrick’s.
— O imóvel estava em avançado estado de deterioração e com diversas características originais alteradas pelo antigo uso e ocupação. Os acessos estavam vedados por muros, deixando aquele trecho da Rua Rainha Guilhermina com aspecto de abandono. O projeto contempla uma nova edificação com fachada discreta que permite que as casas do conjunto arquitetônico sobressaiam. O projeto foi desenhado junto com a equipe de arquitetos do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) — detalha Fernanda.
Ela explica que conceitualmente, na classificação hierárquica, os imóveis tombados têm grau de preservação maior que os preservados. São imóveis com valor histórico, artístico, cultural e arquitetônico importantes para a manutenção da História da cidade.
— Eles devem ter suas características integralmente mantidas, e com isso estamos falando de volumetria, fachadas, interiores, sistemas construtivos, vãos, detalhes ornamentais e materiais de revestimento. Os preservados também são de relevante interesse para o patrimônio cultural e devem ter a volumetria original preservada, mas é permitido realizar algumas intervenções. É possível, por exemplo, construir acréscimos horizontais, criar novos pavimentos e realizar alterações no layout interno, desde que respeitada a integridade das principais características do imóvel. Em ambos os casos, os projetos e as intervenções devem ter a anuência do órgão de patrimônio — diz.
Foi o que aconteceu com o Largo do Boticário, que ocupa uma área de 4.157 metros quadrados e recebeu investimento de cerca de R$ 70 milhões para a renovação de seis casas, respeitando suas principais características originais, assim como a floresta nativa ao redor. As icônicas escadas caracóis, o piso, os azulejos e outros elementos do conjunto arquitetônico passaram por um minucioso trabalho da equipe de restauro, com a supervisão feita pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), órgão que tombou o imóvel.
— Conectar a parte histórica com a linguagem do hotel, que é totalmente contemporâneo, foi um dos pontos mais interessantes nesse trabalho, já que o projeto brasileiro é muito diferente do que existe lá fora. O Jo&Joe Rio de Janeiro foi pensado para tornar o Largo do Boticário um local exclusivo, ressaltando sua importância histórica — diz Mila Strauss, ao lado de Marcos Paulo Caldeira, do escritório MM18, responsável pelo designer do espaço.
A chocolateria Lugano restaurou o prédio da antiga Estação do Cosme Velho, onde se pode pegar o famoso trem para o Cristo Redentor no início do trajeto de 3,8 quilômetros. A estrada de ferro é a primeira ferrovia eletrificada do Brasil, inaugurada em 1884 por D. Pedro II. Foi investido cerca de R$ 1,5 milhão no espaço, que estava fechado e que dispõe de 70 metros quadrados, entre áreas interna e externa. A marca obteve licença de uso por dez anos.
— Estar no principal cartão-postal do Brasil sempre foi sonho da família Lugano. O restauro precisou seguir um rígido controle de diversos órgãos. Demorou muito mais do que desejávamos devido a esse processo e à pandemia que se instaurou quando as obras se iniciaram. Por isso, foram mais de 18 meses de envolvimento para liberação e reforma — lembra Jonas Esteves, diretor de operações da Lugano, acrescentando que a marca faz investimentos cada vez mais ousados em tecnologia, porém sem esquecer das origens, da tradição e do fator humano.
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