Se você mora na Zona Sul, provavelmente já perdeu algum tempo admirando as calçadas de pedra portuguesa, com seus diversos desenhos e padrões, espalhadas por toda a região. Uma marca registrada do Rio de Janeiro, essas calçadas, que já fizeram parte de cenários de ensaios de fotográficos, novelas e filmes, são cuidadas por personagens pouco conhecidos: os calceteiros. Responsáveis por pavimentar estradas, ruas e calçadas, ele faz parte de um dos grupos profissionais que vêm diminuindo ao longo dos anos — caso também dos sapateiros, das lavadeiras e dos barbeiros. Buscando dar luz ao debate sobre as profissões que entraram em “risco de desaparecimento”, a exposição “Memórias vivas — Ofícios em extinção”, que fica em cartaz até 29 de setembro na Casa Firjan, em Botafogo, convida os visitantes a refletir sobre o passado, o presente e as transformações que profissões como costureira, barbeiro, calceteiro, lavadeira e ceramista vêm sofrendo ao longo dos anos.
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Com curadoria da arquiteta e urbanista Gisele de Paula, os artistas se debruçaram sobre as histórias dos ofícios manuais, suas narrativas, suas técnicas e seus significados para o cotidiano. Ela explica que a escolha das obras apresentadas foi baseada em uma “imersão profunda” nos trabalhos dos artistas e no processo de pesquisa:
— Buscamos selecionar obras que refletissem a continuidade e a evolução das práticas ancestrais. O critério principal foi a capacidade das obras de expressar a essência dos saberes tradicionais e de criar um vínculo emocional e intelectual com o público.
A necessidade de preservar e valorizar a nossa herança cultural, diz Gisele, foi o que guiou a concepção da mostra. Segundo a curadora, “trabalhar o tema dos saberes ancestrais e os ofícios em extinção” em uma exposição mostra a “necessidade de preservar e valorizar a nossa herança cultural”.
— Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pela globalização, é vital relembrar e honrar as tradições que moldaram nossa identidade coletiva. Esta exposição não apenas educa e inspira o público, mas também fortalece a conexão entre o passado e o presente, promovendo um respeito mais profundo pelas técnicas e pelos conhecimentos transmitidos através das gerações — explica.
Gisele acrescenta que, ao destacar a relevância contemporânea dessas práticas, incentivamos a sua revitalização e a adaptação às novas realidades, garantindo que continuem a influenciar e enriquecer nossa cultura.
Gerente de Cultura e Arte da Firjan, Antenor Oliveira reforça que a exposição é também um convite para refletir sobre o futuro das profissões, além de dar visibilidade a trabalhos fotográficos autorais e inéditos.
— Procuramos promover, por meio do encontro entre artistas e a curadora da exposição, a troca de experiências com conteúdos e temas relevantes para a atualidade — diz.
A mostra é dividida em cinco núcleos, que refletem o passado e o presente dos ofícios manuais: “Histórico e documental: vestígios do tempo”, “Retratos do passado: rostos da tradição”, “Cenas do cotidiano: ofícios em ação”, “Rastros e relíquias: marcas do passado” e “Reinterpretação contemporânea: herança reimaginada”.
Há cinco anos trabalhando com fotografia, a capixaba Laís Reverte, que hoje mora em Vaz Lobo, bairro da Zona Norte, faz parte do grupo de fotógrafos aprovado no Edital de Cultura Firjan Sesi 2024, proposto pela Casa Firjan para contribuir com a exposição “Memórias vivas — Ofícios em extinção”. Laís é autora da obra “A lavadeira vai ao Centro”, com fotos que mostram mulheres lavando roupa em uma fonte no Largo do Machado. A fotógrafa conta que trabalha há alguns anos com a produção de imagens influenciadas por memória e território.
— Já é uma prática minha prestar muita atenção nos lugares que eu frequento — conta Laís. — E essa produção tem como fio condutor a ideia de trabalhar com ofícios que não são mais vistos, ofícios em extinção, e eu busquei conectar isso com a memória profissional das mulheres negras da minha família. Fui passando pelas costureiras, lavadeiras, passadeiras e daí fui construindo o meu raciocínio.
Com a ideia na cabeça, Laís começou a buscar possíveis modelos para serem fotografadas, e nessa busca acabou esbarrando em uma coincidência que a ajudou a atingir seu resultado.
— A Lani, mãe de uma amiga minha, adora ser fotografada, e logo pensei em convidá-la. Quando eu fui explicar para ela essa proposta, ela compartilhou comigo que a mãe dela, a avó da minha amiga, trabalhou muitos anos como lavadeira. E depois dessa informação não tinha como outra pessoa ser a modelo, né? — indaga.
Morador do Humaitá, Tiago Petric levou para a exposição a obra “Calceteiros”, que foca justamente nos profissionais responsáveis por cuidar das calçadas da cidade, principalmente daquelas revestidas por pedras portuguesas. Para o fotógrafo, a exposição mostra ao público a importância desses profissionais esquecidos para a cidade.
— É muitas vezes sua ausência que nos faz lembrar da importância de um profissional qualificado, que precisa ser valorizado — explica, ele que fez registros em Copacabana, Ipanema e Vila Isabel. — O calceteiro é um artista e precisa ser tratado assim.
Para Raquel Gandra, moradora do Flamengo e criadora da obra “Barbearias”, são muitos os fatores que geram relevância ao dar visibilidade a profissões e atividades em extinção:
— Olhar para essas profissões e atividades nos dá a oportunidade de repensar a atualidade, reconhecer a beleza do gesto e questionar o conceito de progresso e desenvolvimento, que sai engolindo e devastando os processos anteriores em vez de pensar uma coexistência sustentável — diz.
Veterana no ramo da fotografia, com uma trajetória de mais de 30 anos na área, a moradora da Gávea Dani Dacorso construiu sua obra, “Mar leva mar traz”, a partir do seu encontro na orla de Copacabana com um garimpeiro do mar, uma daquelas pessoas que ficam procurando objetos e moedas perdidos por frequentadores da praia.
— Acho fundamental a discussão sobre o trabalho num mundo onde as pessoas têm cada vez menos oportunidades de trabalho — afirma. — Precisamos pensar coletivamente, e a arte tem esse papel de provocar.
Trabalhando no ramo da fotografia profissional desde 2018, a moradora de Copacabana Priscìla Costå já sabia exatamente o que queria fotografar no momento em que se inscreveu no edital. Autora da obra “Raízes costuradas”, ela foi atrás da inspiração dentro de casa.
— A modelo é minha mãe. Meus avós, que eram costureiros e sapateiros, deixaram esse legado para os filhos — conta.
Priscìla afirma que o importante é refletir sobre a importância que essas profissões têm no nosso cotidiano:
— Algumas profissões em extinção estão voltando como objetos de luxo. O alfaiate, antes popular, agora não é qualquer um que pode pagar. São profissões que se vão e outras que estão em evolução.
A Casa Firjan fica na Rua Guilhermina Guinle, 211. A exposição pode ser vista de terça a domingo, das 9h às 18h30. A entrada é gratuita.
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