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Rio Caso Henry

Caso Henry: entenda como as provas técnicas atestaram que o menino foi vítima de homicídio

Perícia utilizou medições em apartamentos e referências de estudos internacionais para desmontar versões apresentadas por Jairinho e Monique, indiciados pela morte
Medição feita pelos peritos durante a reprodução simulada Foto: Reprodução
Medição feita pelos peritos durante a reprodução simulada Foto: Reprodução

RIO — A professora Angela Thompson, que leciona na Universidade americana de Louisville, onde recebeu o título de doutora em Engenharia, focou sua carreira acadêmica em pesquisas sobre a biolmecânica de lesões pediátricas. Há dez anos, um dos seus estudos se debruçou nas quedas domiciliares de curta distância — ocorrência comum entre crianças pequenas, mas também, segundo a própria especialista, “uma história falsa fornecida por cuidadores para ocultar traumas abusivos”.

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Policial durante reprodução simulada no apartamento do Dr.Jairinho Foto: Reprodução
Policial durante reprodução simulada no apartamento do Dr.Jairinho Foto: Reprodução

O trabalho concluiu que, em nenhum dos 79 casos analisados, entre 0 e 4 anos, houve ferimento grave ou risco de vida. Mantido pela Biblioteca Nacional de Medicina (NLM) dos Estados Unidos e disponível na plataforma PubMed, o artigo foi uma das seis obras da literatura médica usada por peritos do Instituto Médico-Legal (IML) e Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) ao avaliarem os depoimentos prestados pelo médico e vereador Jairo Souza Santos Júnior, o Dr. Jairinho (sem partido) e por sua namorada, a professora Monique Medeiros da Costa e Silva, no inquérito que apura a morte do filho dela, Henry Borel Medeiros. Os dois foram indiciados pelo crime e vão responder por homicídio duplamente qualificado.

Ao serem intimados para prestar depoimento sobre a morte do menino , ocorrida na madrugada de 8 de março, no apartamento 203 do bloco I do Condomínio Majestic, no Cidade Jardim, onde moravam os três, os dois disseram acreditar que o menino fora vítima de um acidente doméstico. Ao delegado Henrique Damasceno, titular da 16ª DP (Barra da Tijuca), eles contaram ter encontrado a criança no chão, com mãos e pés gelados e olhos revirados, por volta de 3h30. Após terem conhecimento de que o laudo de necropsia apontava hemorragia interna e laceração hepática , provocada por ação contundente, alegaram que Henry poderia ter caído da cama.

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Secretário de Polícia Civil do Rio, Allan Turnowski garante que as provas técnicas foram essenciais para a conclusão do inquérito e o consequente indiciamento de Jairinho e Monique pelo crime de homicídio duplamente qualificado, por emprego de tortura e impossibilidade de defesa de Henry. Em entrevista ao GLOBO, o delegado explicou que as “provas testemunhais são as mais fracas”, pois apesar de 21 pessoas terem sido ouvidas, entre familiares, vizinhos, médicos e funcionários do casal, três delas chegaram a voltar a delegacia para mudar as versões apresentadas. Ele destacou a robustez dos documentos, obtidos através de exames de necropsia, da reprodução simulada no apartamento e da perícia nos equipamentos eletrônicos .

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Literatura médica

Outra autora que teve sua obra consultada na investigação por profissionais da Polícia Civil do Rio foi a médica pediatra Antoinette Laskey, professora chefe de divisão do Centro para Famílias Seguras e Saudáveis da Universidade de Utah, também nos Estados Unidos. Com quase três décadas pesquisando erros cognitivos na tomada de decisões relacionadas a maus-tratos, fatalidades e programas de prevenção relacionados a práticas inseguras de sono e abuso infantil, ela foi uma das que escreveu “Child abuse: medical diagnosis and management” ou Abuso infantil: diagnóstico médico e manejo, em tradução livre.

A obra traz centenas de fotografias e ilustrações, além de informações diagnósticas, radiográficas e de gerenciamento, incluindo ainda orientações sobre princípios médico-legais. Uma das abordagens mostra que o trauma abdominal é a segunda causa de morte em abuso infantil, após trauma cranioencefálico abusivo. Uma pesquisa da década de 1980 descobriu que 45% a 50% das crianças com trauma abdominal contuso, atribuído ao abuso, morreu.

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Em outro momento, o livro apresenta um estudo com crianças de 0 a 9 anos hospitalizadas com trauma abdominal, em que 9% das crianças com abuso e 3,4% de crianças com trauma abdominal acidental morreram. Outra pesquisa encontrou uma taxa de mortalidade de 11% em crianças com trauma abdominal infligido. “As quedas são frequentemente um mecanismo de lesão relatado, mas quedas domésticas curtas é uma causa improvável de trauma abdominal significativo”, explica.

Em um estudo com mais de 300 crianças caindo 4,5 metros ou mais, apenas 0,9% dessas quedas resultaram em lesões intestinais. Lesões hepáticas, esplênicas e renais foram relatadas em 1,2%, 2,4% e 0,9% dessas quedas de alto nível, respectivamente. Assinados pelo perito legista Leonardo Huber Tauil, o exame de necropsia feito em Henry mostra 23 leões, como equimoses, hematomas, edemas e contusões.

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Reprodução simulada

Peritos com o boneco que será usado na reprodução simulada no condomínio Majestic, na Barra, onde o menino Henry morava Foto: Domingos Peixoto / O Globo
Peritos com o boneco que será usado na reprodução simulada no condomínio Majestic, na Barra, onde o menino Henry morava Foto: Domingos Peixoto / O Globo

Durante a reprodução simulada feita no imóvel que Jairinho, Monique e Henry dividiam desde novembro do ano passado, peritos do IML e ICCE encenaram, no dia 1º de abril, toda a dinâmica do que ocorrera em 8 de março de acordo com a versão apresentada pelo casal. Como eles, apesar de intimados, não compareceram à simulação, uma agente e um policial civil representaram os dois. Um boneco, com as mesmas características do menino, que media 1,15m e pesava 20 quilos, também foi utilizado.

Inicialmente, a mulher, com o boneco nas mãos, simulou levá-lo até o banheiro. Segundo Monique, ela deu banho no filho, por volta de 20h. Depois, colocou-o para dormir na cama de sua suíte. Com o menino tendo pegado no sono, a professora e o namorado contaram ter ido assistir à série “Narcos” na televisão da sala. Enquanto estavam sentados no sofá, eles disseram que Henry chegou a acordar três vezes e ir na direção do casal.

Com a criança na cama novamente, Monique e Jairinho teriam optado por continuar a série em um quarto de hóspedes, onde, apesar de ser mais próximo do cômodo onde estava Henry, o barulho o atrapalharia menos. Eles contaram que, por volta de 3h30, a professora acordou e viu a TV ligada e o vereador dormindo, tendo ela o puxado pelo braço de modo a irem para o quarto onde estava seu filho.

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Enquanto Jairinho teria ido ao banheiro da suíte urinar, Monique encontrou Henry caído no chão, ao lado da cama de casal. Ela ter disse ter o flagrado com mãos e pés gelados e olhos revirados, o que foi reiterado pelo namorado durante depoimento. Tendo percebido que o menino tinha dificuldade para respirar, o casal o enrolou em uma manta e, segundo contou ao delegado, o levou imediatamente ao Hospital Barra D’Or.

Peritos usaram um boneco na recostituição da morte do menino Henry Borel, na barra da Tijuca Foto: Domingos Peixoto / O Globo
Peritos usaram um boneco na recostituição da morte do menino Henry Borel, na barra da Tijuca Foto: Domingos Peixoto / O Globo

Medições em apartamento

O quarto do casal, onde Henry estava na madrugada em que morreu. A poltrona estava de costas para a cama Foto: Reprodução
O quarto do casal, onde Henry estava na madrugada em que morreu. A poltrona estava de costas para a cama Foto: Reprodução

Durante a reprodução simulada e as perícias complementares feitas no apartamento da família, foram realizadas diversas medições nos três cômodos, incluindo o quarto onde Henry estaria dormindo. O laudo com essas informações, enviado ao delegado Henrique Damasceno, concluiu que a queda do menino em nenhuma das hipóteses consideradas diante das circunstâncias narradas por Monique produziria as múltiplas lesões dispersas (externas e internas) em diferentes regiões do corpo da criança (frente e verso).

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Perito mede altura da cama do casal, onde Henry estava, segundo o depoimento dos indiciados Foto: Reprodução
Perito mede altura da cama do casal, onde Henry estava, segundo o depoimento dos indiciados Foto: Reprodução

A análise inclui uma queda da cama (71 centímetros de altura em relação ao piso), do topo do encosto da poltrona (104 centímetros de altura em relação ao piso), e de qualquer outro ponto do quarto, seja da escrivaninha (75 centímetros) ou até mesmo da estante modular fixada na parede (120 centímetros de altura do ponto mais baixo e 207 centímetros do ponto mais alto).

Perito mede a altura do encosto da poltrono do quarto do casal Foto: Reprodução
Perito mede a altura do encosto da poltrono do quarto do casal Foto: Reprodução

O documento destaca ainda que, em questionamentos feitos pelo delegado ao perito legista Leonardo Huber Tauil, o profissional descreveu de forma minuciosa todas as lesões, ressaltando que as descritas com tamanho de 10mm podem corresponder a marcas de pressão digital, ou seja, são condizentes com as produzidas mediante ação violeta. A multiplicidade de segmentos do corpo onde foram encontradas equimoses é compatível com mais de uma contusão.

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Perito mede área do quarto de Dr. Jarinho e Monique Foto: Reprodução
Perito mede área do quarto de Dr. Jarinho e Monique Foto: Reprodução

“As equimoses presentes na face palmar da mão direita, na região suprapatelar ireita, na face lateral do joelho direito, na face medial do tornozelo direito e na região infrapatelar esquerda, bem como no terço superior do braço direito e inferior do antebraço esquerdo não podem ter sido produzidas em uma única contusão (ação). As lesões constatadas no corpo são sugestivas de diversas ações contundentes e diversos graus de energia, sendo que as lesões intra- abdominais foram de alta energia”, atesta.

Os peritos demonstraram também que a presença de infiltrações hemorrágicas no couro cabeludo em três regiões distintas (parietal direita, occipital e frontal) correspondem a três ações contundentes distintas, ou seja, uma queda de altura não produziria tais lesões. “A quantidade de lesões externas não pode ser proveniente de uma queda livre”, escrevem.

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Na reprodução simulada, policial interpreta versão de Monique em depoimento à polícia Foto: Reprodução
Na reprodução simulada, policial interpreta versão de Monique em depoimento à polícia Foto: Reprodução

Diante desses elementos, eles descartaram então a possibilidade de um acidente doméstico (queda), “visto que todas as lesões citadas anteriormente apresentavam características condizentes com aquelas produzidas mediante ação violenta (homicídio)” e afirmaram que as lesões produzidas em Henry se deram no apartamento, durante o intervalo de 23h30 a 3h30.