RIO — Trinta e um anos atrás, o Cristo proibido da Beija-Flor se tornaria uma das imagens mais marcantes do carnaval. No primeiro dia de desfiles do Grupo Especial em 2020, outro Cristo promete ficar para a história da festa pagã. Na Mangueira que apresentou muitas faces de Jesus, o do carro “O Calvário” era a escultura de um jovem negro crucificado, com brinco, tatuagem no pescoço, cabelo descolorido e cravejado de tiros. A alegoria chegava a cerca de 20 metros de altura e trazia, nas laterais, homens e mulheres pregados na cruz, com maquiagens realistas de sangue pelo corpo.
— Acho que as pessoas entenderam o recado. Não tinha nada que eu temesse nesse desfile. Não sou uma pessoa de ter medo — disse o carnavalesco Leandro Vieira na dispersão, ao comentar a polêmica que as possíveis representações do Salvador causavam ainda no pré-carnaval.
Na alegoria mais impactante do desfile, a auxiliar de saúde bucal Alana Monteiro, moradora do Morro da Mangueira, negra de 25 anos, virou Cristo mulher crucificada, personificando a proposta de Leandro Vieira de um “Jesus da gente”, nascido na favela.
— Enquanto estou aqui, milhares de mulheres no mundo estão sendo agredidas e mortas sem terem como pedir socorro. A mensagem contra o feminicídio é a que trago para o desfile — disse ela, que tinha ao seu lado no carro, também crucificados, negros, indígenas e gays.
Imediatamente, enquanto o desfile era transmitido pela TV, surgiam nas redes sociais manifestações a favor e contra a apresentação. Em vídeos e comentários, internautas chamavam de blasfêmia a releitura da vida de Cristo mostrada pela verde e rosa. Outros respondiam, por exemplo, que “a blasfêmia está no ódio de quem usa o nome de Jesus para criar polêmica”, escreveu um homem no Twitter.
Eram Cristos da comissão de frente ao último carro. A rainha de bateria Evelyn Bastos, o mestre-sala Matheus Olivério e o intérprete Marquinhos Art’Samba desfilaram com coroas de espinhos.
— Foi uma das coisas mais difíceis que já precisei enfrentar: “atravessar uma Sapucaí inteira sem sambar foi inédito pra mim — disse a rainha, com correntes no punho e marcas de chagas pelo corpo.
Nas alas, havia componentes retratando bandidos mortos. E as baianas misturaram tudo: eram orixás, com direito a búzios nas saias, mas com a cruz e a inscrição INRI no esplendor.
— É muito significativo conseguir falar de Jesus e orixás, num mundo como o de hoje, de tantos preconceitos e com as religiões de matriz africana abominadas por tantas pessoas — disse a baiana Alana Monteiro, umbandista.
Já o pastor evangélico Henrique Vieira viveu um Cristo mendigo (a representação proibida em 1989 na Beija-Flor de Joãozinho Trinta, com “Ratos e Urubus, Larguem minha fantasia!"):
— Cristo é ofendido quando o povo negro é alvo de preconceito, quando a mulher sofre violência, quando indígena corre de bala, mas hoje, não. No desfile da Mangueira, ele foi celebrado. O Jesus bélico, de arma na mão, não tem nada a ver. Esse Jesus de pé no chão é um grito de liberdade.