Rio
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Após seis anos vivendo na Praça Seca, na Zona Oeste do Rio, Gustavo (nome fictício) decidiu que é hora de se mudar. No fim do ano passado, ele já precisou fazer um acordo com o chefe: os seguidos tiroteios durante as investidas do Comando Vermelho (CV) na região, que até então era dominada pela milícia, forçaram o designer a trabalhar de casa, usando sua própria rede de internet. No entanto, desde o início do ano, quando a facção se estabilizou no controle do bairro, o trabalho remoto deixou de ser uma opção. Traficantes constantemente arrancam caixas de transmissão de sua operadora do alto dos postes, e ele já chegou a ficar mais de 20 dias seguidos sem conexão. A alternativa seria contratar o serviço de “gatonet” fornecido pelos próprios criminosos, mas o designer preferiu deixar a Praça Seca.

O caso de Gustavo não é isolado. A vida dos quase um milhão de moradores dos bairros da Zona Oeste do Rio que entraram na rota da guerra expansionista do CV virou de cabeça para baixo. Voltar para casa à noite, receber uma visita, pedir um carro de aplicativo, andar de moto de capacete e até receber uma encomenda pelo correio: todas essas atividades deixaram de ser triviais e passaram a seguir a cartilha do crime. Ao longo das últimas semanas, O GLOBO percorreu Rio das Pedras, Gardênia Azul, Terreirão, Guaratiba e Praça Seca — bairros que tiveram áreas invadidas pelos traficantes nos últimos anos — para colher relatos de moradores e detalhar como a guerra do crime impacta a rotina da população. É o terceiro e último dia da série de reportagens sobre o plano de retomada do CV, dentro do projeto Tem Que Ler, iniciativa exclusiva para assinantes.

Na Gardênia Azul, os moradores da comunidade e do seu entorno foram obrigados a conviver com as imposições da milícia por três décadas. Ao longo de 2023, passaram a conviver com as investidas do tráfico: tiroteios e a circulação ostensiva de fuzis, raros nos tempos da hegemonia dos paramilitares, passaram a ser corriqueiros. Hoje, a população ainda se habitua ao domínio do CV, que se estabeleceu na região no início deste ano.

— Até mesmo nas vias principais do bairro não dá mais para pedir carro por aplicativo de noite. Hoje, estamos vendo acontecer em todo o bairro o que há alguns anos só acontecia lá dentro da comunidade. Na minha esquina, tinha um bar e uma mercearia antigos que ficavam abertos até de madrugada, agora às 18h não tem mais nem criança brincando na rua — relata uma moradora, de 31 anos, todos vividos no bairro.

Colonização de 23km²

Dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da UFF, compilados pelo GLOBO, escancaram como o crime foi se espraiando nos últimos dois anos pela região invadida pelo CV, que vai da Praça Seca até Guaratiba, passando por toda a Grande Jacarepaguá. Ao todo, 89 localidades diferentes, que ocupam 23km² — uma área três vezes maior que Copacabana — e onde vivem mais de 60 mil pessoas, foram “colonizadas” pelo crime em seis anos. São regiões que não apresentaram nenhuma denúncia de atuação de criminosos em 2017, assistiram ao avanço de facções do tráfico ou milícias e, em 2023, já registraram casos de violência, cobranças de paramilitares ou a implantação de bocas de fumo.

É o caso, por exemplo, da Cascatinha, comunidade de Vargem Grande hoje dominada pelo CV. Em 2017, não havia denúncias da presença de grupos criminosos no local. De lá para cá, a milícia chegou a se instalar na favela, em meados de 2020, mas não conseguiu conter o avanço da facção nos anos seguintes. Em outubro do ano passado, no auge da ofensiva dos traficantes, o local foi alvo de uma operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) que terminou com as mortes de seis homens apontados como integrantes da facção.

No Piraquê, em Guaratiba, que ainda é foco de disputa entre traficantes e milicianos, uma moradora reclama que, de um ano para cá, não consegue mais receber encomendas pelo correio nem pedir comida pelo aplicativo. Já um estudante que vive em Rio das Pedras — último reduto da milícia na região, alvo de ataques frequentes do CV — conta que, em meio à disputa, os moradores que continuam pagando as taxas para os paramilitares são cobrados pelos traficantes que tentam invadir a favela.

— Quem fica no meio dessa situação é o morador. Se a gente não paga taxa da milícia, corre risco. Mas se paga também corre porque os traficantes abordam e questionam por que estamos pagando — conta.

Relatos dos moradores e investigações recentes da polícia mostram que o CV replicou o modelo da milícia e já atua na exploração da venda de gás, água mineral, pacotes de internet e até no mercado imobiliário nas regiões que tomou dos rivais. Muitas vezes esse controle extrapola os limites das favelas.

— Jacarepaguá é a região em que a população mais cresceu no Rio, tem uma atividade imobiliária intensa e décadas de imposição de taxas e exploração dos mais diversos serviços pela milícia. O CV não busca somente um território para vender drogas, mas também disputar essa forma de atuação miliciana e aumentar seus lucros — afirma Carolina Grillo, professora de Sociologia da UFF.

Homicídios cometidos em meio à guerra pelo controle da Gardênia Azul expõem a entrada do tráfico nos mercados explorados anteriormente pela milícia. Em 13 de março do ano passado, Miqueias Gomes foi capturado por traficantes e levado até o interior da Cidade de Deus, onde foi executado. Gomes teria sido morto, segundo a polícia, porque vendia gás na favela e teria deixado de repassar para os traficantes todo o valor acordado.

Serviços ‘retomados’

Nove dias depois, Ironaldo Salvador de Alcântara, dono de um depósito de água, foi assassinado dentro da favela. Parentes contaram à polícia que ele havia se recusado a vender água fornecida pelos traficantes. Já no dia 30 do mesmo mês, foi a vez de Victor Paiva Borges, apontado como o responsável pelo esquema de exploração de “gatonet” do tráfico, ser morto a tiros.

— Com a adoção de práticas milicianas, o tráfico de drogas se tornou apenas uma das várias atividades ilícitas exploradas pelo grupo. Atualmente, o controle territorial é fundamental para o crime organizado, permitindo a exploração econômica coercitiva dos moradores, que vai da venda de botijões de gás até o transporte alternativo — explica o promotor Fabio Corrêa, coordenador do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio.

Série de reportagens descreve o avanço do Comando Vermelho no Rio

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Não é só na Zona Oeste que o plano expansionista do CV tem mudado as rotinas dos moradores. Desde dezembro de 2023, o dono de um bar perto do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na Zona Norte, coloca o aparelho de som no volume mais alto para abafar o barulho dos tiros. Segundo ele, dessa maneira, os frequentes tiroteios na favela não espantam os clientes. A comunidade, dominada pelo Terceiro Comando Puro (TCP), também é objeto de desejo do CV e registra uma escalada de confrontos após a facção ter se estabilizado no domínio da Grande Jacarepaguá.

— É um jeito que arrumei. Às vezes não dá nem para conversar direito, mas ajuda a não assustar a clientela — afirma o comerciante.

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