Rio
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Por e — Rio de Janeiro

Amélia Maria de Araújo Tavares, de 71 anos, se mudou para a Gardênia Azul ainda adolescente, com 15 anos. O loteamento que daria origem ao bairro na Zona Oeste do Rio havia acabado de ser inaugurado pelo então governador Negrão de Lima, no fim da década de 1960. Não havia facções do tráfico, muito menos milícias. Aquela seria sua morada de uma vida inteira: foi na Gardênia que conheceu o marido, casou, teve duas filhas e abriu o próprio negócio, uma papelaria, após se formar técnica em contabilidade. Mas, no último 6 de abril, a guerra do crime chegou a sua porta. Amélia estava sentada na calçada para esperar o marido voltar com o pão para o café da tarde, como fazia há décadas. Seu cotidiano foi interrompido por homens numa moto, que entraram na rua atirando. Dois disparos atingiram a idosa, um no tornozelo e outro no peito. Parentes ainda tentaram socorrê-la. Foi em vão: ela já chegou morta ao hospital.

Seu assassinato passou a integrar uma longa lista de homicídios cometidos na guerra travada pelo Comando Vermelho (CV) para expandir o domínio de territórios no Rio. No segundo dia da série especial sobre o plano de retomada da facção, O GLOBO conta as histórias das vítimas na escalada da brutalidade dos conflitos do grupo criminoso, que espalha um rastro de sangue pelo caminho. A série faz parte do projeto Tem Que Ler, iniciativa exclusiva para assinantes. Levantamento feito com base em registros de ocorrência, relatórios policiais e notas oficiais das polícias Civil e Militar revela que, entre janeiro de 2023 e a última sexta-feira, ao menos 238 pessoas foram assassinadas nas regiões que foram alvo da facção. Ou seja, dia sim, dia não, uma pessoa foi morta em meio aos confrontos.

Mortos na guerra do Comando Vermelho para expandir seus territórios — Foto: Editoria de Arte
Mortos na guerra do Comando Vermelho para expandir seus territórios — Foto: Editoria de Arte

Do total, 141 pessoas — ou 60% — foram assassinadas por criminosos em tentativas de invasões, em tiroteios ou em execuções. Outros 97 morreram quando o Estado tentou intervir na guerra entre bandos rivais, em operações policiais nas áreas conflagradas ou em razão dos confrontos. Assim como Amélia, outras 25 vítimas, 11% do total, não eram traficantes ou milicianos, nem tinham participação na guerra. São pessoas atingidas por balas perdidas, inocentes mortos por engano ao serem confundidos com criminosos ou até moradores de regiões sob disputa que se recusaram a aceitar regras impostas pelos invasores.

— Amélia já estava caída no portão, quando o marido dela voltou da padaria. Só deu tempo de olhar para ele uma última vez. Eles completariam 48 anos de casados. Ela queria se mudar. Mas, infelizmente, não conseguiu fazer isso antes da tragédia — conta uma familiar da idosa, que pediu para não ser identificada.

Morta um dia antes da mudança de casa

A dona de casa Martha Braz de Azevedo, de 66 anos, também teve seu dia a dia atravessado pela barbárie. Via televisão na sala de casa, na Praça Seca, na Zona Oeste, ao ser atingida por um tiro de fuzil no pescoço, e morreu, em setembro do ano passado. A região foi tomada pelo CV no início de 2023, após uma década de disputa com os paramilitares. No entanto, desde então, houve várias tentativas de retomada por parte da milícia e investidas de traficantes do Terceiro Comando Puro (TCP) que dominam o Morro do Fubá, no bairro vizinho de Campinho. Não se sabe de onde partiu o disparo.

Já a pastora evangélica Marta de Jesus Gomes, de 44 anos, chegava em casa do supermercado com a filha, quando um tiro acertou sua cabeça. Dois bandos rivais começavam um tiroteio na Gardênia Azul. Justamente devido à onda de violência, Marta estava de mudança: ela deixaria a comunidade no dia seguinte.

O bairro está no topo do ranking de assassinatos decorrentes da guerra: do total de mortes contabilizadas no levantamento, 35 aconteceram lá — 31 em tiroteios entre bandos rivais e quatro em ações da polícia. O vizinho Anil vem em seguida, com 33 homicídios. Mais da metade aconteceu em uma só rua, a Araticum, que ganhou o apelido de Rua da Morte.

Os homicídios são acompanhados ainda de um aumento na circulação de fuzis no “cinturão” de favelas invadidas pelo CV. No ano passado, 75 armas do tipo foram apreendidas pela polícia na região que vai da Praça Seca até Guaratiba. O número é um recorde absoluto: desde 2007, início da série histórica do Instituto de Segurança Pública (ISP), a maior quantidade de apreensões de fuzis na região havia sido 34, em 2018. A tendência é que a marca seja batida novamente este ano: só de janeiro a abril, 47 fuzis foram retirados de circulação na área.

À medida que o CV invade favelas e espalha mortes, a facção promove ainda uma verdadeira “caça às bruxas”, eliminando informantes da milícia e até parentes de paramilitares. Até quem se recusava a mostrar o celular quando era abordado na rua estava em risco. O gerente de churrascaria Elson Ferreira de Almeida, de 41, foi executado a tiros após ser capturado e espancado por traficantes quando voltava para casa, na Gardênia, em outubro de 2023. Após o crime, numa conversa com a filha da vítima por um aplicativo de mensagens, um dos assassinos confessou que Almeida havia sido morto após se recusar a mostrar o celular ao ser abordado. “Não queria que fosse assim. Era só ele ter colocado a senha”, justificou-se o criminoso. A facção suspeitava que ele ainda tinha contato com milicianos, mesmo após a invasão do tráfico. Em março de 2024, cinco traficantes foram denunciados à Justiça pelo homicídio.

Médicos Marcos de Andrade Corsato, Perseu Ribeiro Almeida, Diego Ralf Bonfim e Daniel Sonnewend Proença foram alvo de ataque a tiros no Rio — Foto: Reprodução
Médicos Marcos de Andrade Corsato, Perseu Ribeiro Almeida, Diego Ralf Bonfim e Daniel Sonnewend Proença foram alvo de ataque a tiros no Rio — Foto: Reprodução

Na guerra, três assassinatos por engano também chocaram o país. Em outubro do ano passado, a imagem de um grupo de médicos sendo alvo de um ataque na orla da Barra da Tijuca rodou o mundo. Os criminosos desembarcaram de um Fiat Pulse branco, dispararam pelo menos 33 vezes e mataram os ortopedistas Perseu Ribeiro de Almeida, de 33, Marcos de Andrade Corsato, de 62, e Diego Ralf de Souza Bomfim, de 35, que estavam no Rio para um congresso. A investigação do crime concluiu que os atiradores confundiram Perseu com o miliciano Taillon de Alcântara Pereira Barbosa, chefe do grupo paramilitar que domina Rio das Pedras e um dos maiores rivais do CV na disputa de territórios na Zona Oeste. Uma ligação interceptada pela polícia revelou como um informante, que achou ter avistado o miliciano, deu aos atiradores a localização dos médicos: “Acho que é o Posto 2”, disse o homem.

No dia seguinte, os corpos dos quatro dos assassinos foram encontrados dentro das malas de dois carros abandonados em Jacarepaguá. Eram os integrantes da Equipe Sombra, quadrilha de pistoleiros a serviço do CV mencionada em dezenas de inquéritos de assassinatos envolvendo desafetos dos traficantes. As mortes dos médicos desagradaram a cúpula da facção, que julgou e condenou os atiradores num “tribunal do tráfico”.

Antes do ataque na Barra, porém, a Equipe Sombra já era acusada de uma série de execuções, como a do pedreiro Erinaldo Gomes da Silva, morto com vários tiros na cabeça em frente ao portão de casa, na Gardênia Azul, em fevereiro de 2023. Segundo a polícia, os traficantes suspeitaram que ele fosse informante de milicianos. No mês seguinte, o veterinário Ademilson dos Santos foi emboscado pelos integrantes do grupo após ter reclamado da invasão do terreno de sua casa pelo tráfico para instalação de uma boca de fumo.

O avanço do CV pelo Rio, no entanto, não é construído somente à base de ataques e assassinatos. Os bastidores da guerra têm traições, cooptação de rivais e até suspeitas de uma “venda” de favela. Na Gardênia Azul, uma mudança de lado abriu as portas da comunidade, que era dominada pela milícia há três décadas, para os traficantes.

No final de 2022, o grupo paramilitar local sofreu um racha: os milicianos Leandro Siqueira de Assis, o Gargalhone, e Philip Motta Pereira, o Lesk, foram expulsos da Gardênia após tentarem dar um golpe em seus antigos comparsas para assumir o controle da favela. Os dois, então, fecharam um acordo com a cúpula do CV, viraram integrantes da facção e passaram a integrar os bandos que promoviam ataques à milícia. Lesk era um dos membros da Equipe Sombra executados após o ataque aos médicos. Gargalhone também foi executado em meio à guerra. No início de 2024, o tráfico conseguiu se instalar na Gardênia.

Outro ex-miliciano cooptado pelo CV foi Marcelo de Luna Silva, o Boquinha, que chefiava o grupo paramilitar que dominava favelas no Recreio, em Guaratiba e nas Vargens. Temendo perder o controle de seu território para um grupo paramilitar rival, ele se aliou ao CV e passou a participar ativamente das incursões dos traficantes na região. Boquinha acabou baleado num confronto com policiais civis e foi preso em outubro de 2023.

Série de reportagens descreve o avanço do Comando Vermelho no Rio

Série de reportagens descreve o avanço do Comando Vermelho no Rio

Como numa batalha por tronos, Horácio Souza Carvalho, que chefiava a milícia da Praça Seca e do Jordão, também foi executado. Foi baleado dentro de um bar, em Búzios, na Região dos Lagos, em maio de 2023. Os assassinos — um ex-segurança de Horácio e três policiais — foram presos em flagrante logo depois do crime. A polícia suspeita que a morte tenha sido uma retaliação de seus ex-comparsas após Carvalho ter vendido para o CV um a das favelas sob seu comando, o Jordão, por R$ 10 milhões.

É um conjunto coordenado de ações que, segundo relatório de inteligência ao que O GLOBO teve acesso, tem uma movimentação dentro da cadeia como crucial para que o plano de expansão fosse colocado em prática. Luís Cláudio Machado, o Marreta, é apontado pela polícia como o homem de guerra da facção: antes de ser preso, no Paraguai, em 2014, era ele o responsável por chefiar bondes armados que, à época, tentavam expulsar a milícia da Praça Seca. Após a prisão, por ser considerado “de alta periculosidade”, ele foi transferido para penitenciárias federais. Mas, desde outubro passado, ele está de volta ao Rio: uma decisão judicial determinou o retorno do traficante ao Complexo de Gericinó, onde permanece.

Uma vez no Rio, segundo o relatório, Marreta recebeu uma incumbência da cúpula da facção: “dominar por completo a região da Grande Jacarepaguá”. E mesmo após o CV ter tomado a maior parte da região em meados de 2023, o topo da hierarquia da facção estaria “insatisfeita” com a instabilidade do domínio, pois tiroteios com milicianos ainda são constantes.

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