Rio
PUBLICIDADE

Por Nelson Faria Marinho, em Depoimento A Marcella Sobral — Rio de Janeiro

O último contato que eu tive com o meu filho, Nelson Marinho, foi há 13 anos. Ele tinha 40 anos. Saiu dessa garagem aqui, abraçou todo mundo, como se tivesse tido uma premonição. Todo mundo sentiu. Ainda bati na cabeça para aquele sentimento ruim ir embora. Ele não se despedia de ninguém. Nesse dia, ele fez questão de se despedir, de um a um. Isso foi num domingo.

No sábado, ele disse que queria fazer um churrasco. Fomos ao mercado, compramos carne e eu comentei com ele: “Você vai para tão longe, rapaz”. E ele disse que era lá que ele ganhava o dinheiro dele. Ele trabalhava com prospecção de petróleo para uma empresa italiana que tinha um contrato com a Air France. A plataforma ficava em Angola, e ele fazia conexão em Paris. Numa dessas viagens, ficou pelo meio do caminho.

Tudo tem que ser conforme é, mas, se eu tivesse a certeza, teria evitado. Ele foi para o aeroporto com a moça com quem ele se relacionava. Foi o último a entrar no avião. Acabei até conhecendo o policial federal que abriu a correntinha para ele passar por último.

No dia seguinte, acabou tudo. Sempre vejo o noticiário da manhã, o Bom Dia Brasil, e passou: “O avião da Air France sumiu, o voo 447”. Fiquei perdido. Fiquei desesperado. Isso vai se arrastar para o resto da minha vida. É muito duro. Já perdi pai, mãe, irmãos... Mas filho é uma coisa que não dá para traduzir em palavras. Sou pai de cinco, mas quando você perde um dedo, fica faltando um na mão.

Somos muito afetados, todos os dias, todas as horas, até hoje. A gente não para de pensar. Faz um churrasco, lembra. Vai ao supermercado, lembra. O certo é o filho enterrar pai e mãe, não o contrário. Você pega aquele garotinho no colo, dá banho, penteia o cabelo, leva ao parquinho, à escola... vive. E, de uma hora para outra, acaba? Não é justo.

Eu não me conformava. Eu dei algumas entrevistas, e as pessoas achavam que eu estava maluco. Eu falava: “Ele sabe nadar muito bem. Pode estar numa ilha”. Fiquei nessa angústia por uns dois meses. Só depois que fui me dando conta da situação...

A Air France disponibilizou um hotel na Barra para um encontro das famílias. Comecei a fazer contato com as famílias, e a companhia aérea, com a tropa de choque dela, não queria que a gente conversasse um com outro. Então, subi em uma cadeira e criei a Associação dos Familiares de Vítimas do Voo 447, que hoje tem 56 pessoas. Aí veio o pessoal da Air France perguntando o que eu queria. Disse que queria papel e caneta. Juntei 12 famílias e fiz a primeira reunião aqui na minha casa.

Os franceses não queriam fazer as buscas para não gastar dinheiro. Mas a associação já estava formada, fui para a França me encontrar com representantes das associações francesa, italiana e alemã. Fomos todas em cima do governo francês para que retirassem a aeronave do fundo do mar. Depois de dois anos e meio, eles começaram a tirar a aeronave e os corpos.

Quando você tira uma aeronave de uma profundidade daquela, de quase quatro mil metros, há uma compressão muito grande em cima dos corpos, então você só tira restos de corpos, você não tira corpos. Então, sepultei os restos mortais do meu filho, depois de dois anos e meio. Para o ser humano, é importante isso. O ser humano necessita disso, de fazer o sepultamento, de ver. Embora o caixão estivesse lacrado, você vê o caixão, sepulta e se conforma. Enquanto isso não acontece, você fica na esperança: “Ele vai voltar, isso não aconteceu”. Essa foi outra luta que nós tivemos. O luto não termina.

Há uma nova etapa do processo (um julgamento está acontecendo em Paris), mas eu não acredito na Justiça francesa. Eles são muito corporativistas, eles preservam muito as empresas deles. Isso já aconteceu com outras tragédias. Eles deixam prolongar para as pessoas irem desistindo, irem morrendo, para eles ficarem isentos. Preso ninguém vai ser, até porque já trocaram os diretores nestes 13 anos.

Fui 18 vezes à França para interagir com o governo francês, mas para eles é normal, não querem nem saber. É o capital superando a vida. É a raposa tomando conta do galinheiro: o avião, francês; a companhia aérea, francesa; a investigação, francesa. Vai dar em quê? Na culpa do piloto, que não pode mais falar. Mas justiça sei que não vai ser feita. Ninguém vai ser responsabilizado. Com a prisão, pelo menos você se sente vingado pela irresponsabilidade da pessoa.

Nós temos o Tratado de Chicago — do qual o Brasil é signatário —, que diz que, quando há uma tragédia, o país mais próximo envolvido no caso tem o direito de investigar. O Brasil teria, então, esse direito porque o avião caiu mais perto de Fernando de Noronha. Se as investigações tivessem ficado aqui, o cenário seria outro. Não sei se o governo brasileiro quis se livrar, quis passar o problema. Quem morre é que se dana todo. Não é filho deles, não é parente deles.

É um drama, muda tudo. E eu tenho que encarar tudo isso. Ninguém quer enfrentar um repórter, não quer falar sobre isso, para não reviver essa angústia. Eu encaro isso porque sou uma pessoa determinada. Eu prometi a mim mesmo que eu só paro se eu morrer. Teve gente que não aguentou.

Nesse processo, indenização é uma outra coisa. Isso já aconteceu. Foi feito um acordo porque a nossa Justiça aqui é muito morosa. A maioria das famílias fez o mesmo. Se fosse dinheiro, eu já não estava mais nessa. Eu procuro evitar que outros sofram o que estamos sofrendo.

Mais recente Próxima

Inscreva-se na Newsletter: Notícias do Rio

Mais do O Globo

Consumidor pode 'reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação' 'em trinta dias, tratando-se de fornecimento de produtos não duráveis', caso de produtos como o café

Comprou café impróprio para consumo? Veja como proceder; Ministério da Agricultura reprovou 16 marcas

No Instagram, PA fica atrás apenas dos aposentados Usain Bolt e Caitlyn Jenner; ele é o segundo representante brasileiro mais seguido

Atleta do Brasil nos 100m rasos, ex-BBB Paulo André é esportista do atletismo com mais seguidores no mundo nas redes sociais

David Pina conquistou torcida com cabelo no formato de Mickey Mouse

Primeiro medalhista de Cabo Verde teve de parar preparação para Paris-2024 para trabalhar como pedreiro em Portugal: 'Dinheiro acabou'

Haverá recepcionistas bilíngues, que darão informações sobre o estado do Rio aos visitantes

Galeão nas alturas: com quase o dobro de conexões doméstico-internacionais, terminal vai centro de informações turísticas

Brasileira pode conquistar nova medalha em Paris hoje. Rebeca Andrade é favorita ao pódio

Rebeca Andrade nas Olimpíadas: onde assistir e qual é o horário da final do salto da ginástica artística

Quais são as marcas e as técnicas que procuram diminuir o impacto negativo sobre o meio ambiente da roupa mais democrática do planeta

Conheça alternativas para tornar a produção do jeans mais sustentável

Fotógrafos relatam como foi o processo de concepção das imagens em cartaz na Casa Firjan, em Botafogo

Lavadeira, barbeiro, calceteiro: exposição de fotos em Botafogo enfoca profissões em extinção

‘Queremos criar o museu do theatro’ revela Clara Paulino, presidente do Theatro Municipal

Theatro Municipal pode ganhar museu para expor parte do seu acervo de 70 mil itens