Rio
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Por Carmélio Dias — Rio de Janeiro

Os olhos de Terezinha Mendes da Silva, de 95 anos, brilham quando ela começa a falar sobre o velho amigo Herbert de Souza, o Betinho. Primeira parceira do sociólogo na luta contra a fome, Terezinha até hoje comanda um dos cerca de três mil comitês da ONG Ação da Cidadania espalhados pelo país — pelo menos 300 deles ficam no Estado do Rio. Sua importância na história da obra construída por Betinho pode ser resumida em um episódio: saiu dos lábios dela a icônica frase que acompanha três décadas de campanha contra a fome.

— Betinho era uma pessoa fantástica, lembro do dia em que a gente se conheceu. Meu primo trabalhava no escritório do Henfil (cartunista, irmão de Betinho) e eu estava lá quando ele chegou. A gente se identificou logo — conta. — Ele disse que queria organizar a Ação da Cidadania, e a gente conversou bastante. Ele me explicou qual era o projeto, e eu disse que estava dentro. No final, ele disse: “Então tá bom, amanhã a senhora volta”. Eu respondi: “Amanhã já morreu; quem tem fome tem pressa".

Betinho fundou a Ação da Cidadania há 30 anos, no Rio; hoje são cerca de três mil comitês da ONG no Brasil — Foto: Divulgação
Betinho fundou a Ação da Cidadania há 30 anos, no Rio; hoje são cerca de três mil comitês da ONG no Brasil — Foto: Divulgação

No comitê fundado por ela, no bairro Ponto Chic, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, bem perto de onde ela mora, há uma biblioteca com mais de seis mil livros doados, uma cooperativa de costureiras e estrutura para catadores de materiais recicláveis da região.

— Eu tive dois professores para me ensinar a ser quem eu fui e quem eu sou: minha mãe primeiro e, depois, o Betinho. Andei muito com ele por aí, fizemos muitas coisas juntos e eu aprendi bastante com ele — reconhece a mineira Terezinha, que encontrou no Rio o sentido de uma vida dedicada à solidariedade.

Planos para o futuro

Criada pelo sociólogo em 1993, no Rio, a Ação da Cidadania completa, este ano, 30 anos de atuação sem interrupções. A frase citada por Terezinha, e que virou o mantra do programa, segue sendo o norte da rede de solidariedade montada lá atrás.

O foco na urgência dos famintos se justifica pelos números. Quando o movimento começou, eram 32 milhões de pessoas (20% da população) sem ter o que comer regularmente no Brasil. Hoje, são 33,1 milhões (15,9%), o que levou o país de volta ao Mapa da Fome da ONU. Entre avanços e recuos, a verdade é que, três décadas depois, o país segue incapaz de garantir segurança alimentar a seus cidadãos como preconiza o artigo 6º da Constituição.

As campanhas regulares e emergenciais seguem a todo vapor na ONG. De 2020 a 2022, foram distribuídas 34,2 mil toneladas de alimentos, e este ano o movimento se organizou para levar ajuda humanitária aos ianomâmis. Foram 17 toneladas de comida e 900 kits de higiene enviados à terra indígena.

Apesar disso, boa parte das energias da Ação 3.0 está voltada para a construção de um novo momento, em que a distribuição pura e simples de cestas básicas seja algo secundário. O esforço é para imprimir ainda mais profissionalismo no dia a dia da organização e consolidar uma ampla rede de influência política e social.

— O que a gente faz é uma questão emergencial, uma ação para chamar a atenção sobre o problema da fome. A partir disso, é preciso exigir que o poder público assuma sua responsabilidade constitucional de garantir a segurança alimentar no país — diz Daniel de Souza, presidente do Conselho da Ação da Cidadania e filho de Betinho. — Vamos usar nossa força para fazer pressão nesse sentido. Queremos que as pessoas saibam quais são os seus direitos e cobrem cada vez mais ações concretas para erradicar a fome de uma vez por todas. É possível, já vivemos dias melhores.

A estratégia para os próximos 30 anos inclui, por exemplo, a ampliação da participação de empresas no financiamento da Ação. Em 2022, a ONG brasileira recebeu as duas maiores doações feitas por Facebook e Mastercard fora dos Estados Unidos. Com mais recursos, o objetivo é tornar mais efetivo, por exemplo, o trabalho de advocacy (termo em inglês para definir as práticas de comunicação que visam a influenciar entes públicos a adotar medidas e políticas consideradas importantes para determinado setor).

— Nosso objetivo é que a Ação se torne uma das principais ONGs de mobilização da sociedade civil em temas que envolvam direitos humanos, cidadania e combate à fome. A gente precisa ser muito forte para conseguir brigar com quem está do outro lado. Essa força só virá com gestão. É preciso acabar com o mito de que em organizações sociais as pessoas precisam trabalhar como franciscanos. Quanto mais eu invisto em profissionais de alta capacidade, mais impacto eu gero e mais influência eu tenho para construir políticas públicas que levem em consideração a sociedade civil — acredita Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania.

O Rio como tambor

A mais recente pesquisa sobre a fome no Brasil, por sinal, revela que o Rio é uma espécie de espelho do Brasil quando o assunto é fome. De acordo com os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado no ano passado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), o Estado do Rio tem 57,2% da população com algum nível — leve, moderado ou grave — de insegurança alimentar. Percentualmente é o pior resultado na Região Sudeste. Quando se analisa apenas os casos graves, o estado apresenta resultado muito semelhante ao total nacional: são 15,5% no país e 15,9% no Rio.

— A gente costuma dizer que o Rio é o retrato do Brasil. Os dados daqui coincidem com os dados nacionais. Somos o tambor do Brasil também na tragédia — avalia Kiko Afonso.

O poder transformador da solidariedade atravessa o tempo. Fabrícia Miranda, de 40 anos, ainda tem vivo na memória o Natal de 1995, quando uma cesta doada pela Ação da Cidadania fez a diferença.

— A nossa família estava passando por um momento muito difícil com minha mãe desempregada. Aqueles alimentos chegaram na hora certa — lembra.

Em 2017, já com duas graduações, Fabrícia participou de um curso de roteiro promovido pela ONG e deu uma guinada em sua vida profissional.

— Por dois momentos a Ação atravessou a minha vida de forma marcante. Assim como eu, muitas pessoas foram impactadas ao longo dos anos de diferentes formas — diz Fabrícia.

O ano de 2023 será recheado de eventos comemorativos pelos 30 anos da Ação da cidadania. Em novembro, está prevista a estreia de uma série no Globoplay contando a luta de Betinho contra a fome. Um livro sobre a história da ONG também está programado.

A sede nacional da Ação, em Santo Cristo, na Zona Portuária do Rio, receberá uma exposição com curadoria da diretora Bia Lessa, e mais de cem mil documentos serão disponibilizados para consulta on-line.

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