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Por Ana Lucia Azevedo — Rio de Janeiro

O elenco tem serpente africana, cão invasor, bombeiros equivocados e gente sem noção do perigo. O cenário é a Floresta da Tijuca. E o pano de fundo o Rio de Janeiro, uma cidade sem pudor de flertar com o surrealismo. Seria mais uma lenda urbana, se não fosse real.

É uma história em aberto, cheia de mistérios, que não se encerra com a morte trágica da protagonista, uma píton-bola africana. O caso evidenciou que, a despeito da maioria não perceber, as cobras estão entre nós. Existem 23 espécies nativas delas no Parque Nacional da Tijuca (PNT), afirma o especialista em fauna urbana e doutor em ecologia Izar Aximoff.

No entorno da unidade de conservação moram três milhões de pessoas e, entre elas, há até algumas poucas que tentam salvar as serpentes, as capturam quando entram onde não são chamadas e as devolvem à mata.

A existência de tantas cobras, mesmo que não pareça, é uma boa notícia. As cobras ajudam a manter o equilíbrio da floresta, que vive no limite da sobrevivência, destaca o biólogo Marcelo Lopes Rheingantz, coordenador-técnico do projeto Refauna, que busca reintroduzir a fauna da Mata Atlântica.

— Elas são os predadores de topo da cadeia alimentar do PNT, fundamentais para a existência de uma floresta que nos traz numerosos benefícios e, sem a qual, o Rio seria cerca de quatro graus mais quente —frisa Rheingantz.

Uma píton 'invasora'

O conto da vida real começou há pouco mais de duas semanas, quando um bombeiro bem intencionado, mas equivocado, soltou dentro do Parque Nacional da Tijuca uma píton-real africana (Pyton regius), também conhecida como píton-bola.

Essa píton, cuja criação precisa da autorização do Ibama, é cobiçada como pet por apreciadores de répteis, por ser considerada dócil e não venenosa. Mede cerca de 1,5 metro e custa em torno de R$ 7 mil, mas no mercado ilegal sai por R$ 500. É uma espécie exótica, com potencial de virar praga na já debilitada Mata Atlântica.

Eclética, pode se reproduzir de forma sexuada ou assexuada, o que se chama de partenogênese facultativa. Isto é: em tese, poderia ter filhotes que se espalhariam pelas matas cariocas. Quando ameaçada, em vez de dar o bote, ela se enrosca e forma uma bola com o corpo, daí o nome.

Ainda não se explicou como a píton foi parar, na sexta-feira, dia 3 de março, no banheiro de uma casa no Alto da Boa Vista. Apavorado, o morador chamou os bombeiros. Ele foram lá e resgataram a cobra. Mas como era fim de tarde, deixaram a ofídia numa caixa para a soltura na floresta no dia seguinte. Para eles, era uma jiboia, espécie da Mata Atlântica.

Porém, um bombeiro apiedado pela cobra passar a noite na caixa decidiu resolver logo o problema e a soltou no PNT, para ele, “seu habitat natural”. A foto do resgate e de seu suposto final feliz foi vista por analistas do ICMBio e foi um deles que descobriu o erro e o perigo.

Biólogos como Aximoff e Rheingantz observam que os bombeiros não poderiam ter soltado a cobra sem consultar o PNT e deveriam procurar especialistas. Já o Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro (CBMERJ) informa em nota que as cobras são os animais mais capturados no estado e que “conta com um Procedimento Operacional Padrão diferente, que indica as circunstâncias em que cabe a atuação da corporação e também orienta sobre as técnicas e os equipamentos a serem empregados na abordagem, apreensão, transporte, soltura ou no encaminhamento para outros órgãos.”

O fato é que uma cobra exótica foi deixada à solta na floresta, com o constrangimento para os bombeiros de terem introduzido, numa unidade conservação, sem autorização, uma espécie estrangeira. A direção do PNT e especialistas ficaram preocupados, e moradores, alarmados.

À medida que a história se espalhava, a cobra “aumentava” de tamanho, e no entorno da floresta já havia gente com medo de ser engolida em casa. Além de outros mobilizados para capturar o bicho, que tomava a dimensão de monstro.

Morta por um cachorro

Na comunidade do Horto, Roberto Fonseca e seus vizinhos se preparavam para uma eventual chegada da píton, embora essa possibilidade fosse nula, já que ela fora solta a mais de 10 quilômetros dali. Havia medo de que a píton comesse os animais domésticos e atacasse crianças. Medo que faz algum sentido para quem é vizinho de cobra.

Fonseca é conhecido por resgatar cobras que vão parar nas casas da vizinhança e devolvê-las à floresta. E estava a postos para uma eventual chegada da píton. Dias antes, ele havia tirado da comunidade uma jiboia que comera um cão — um “cofapinho” — que flanava na mata, lugar onde ele não deveria estar, já que a entrada de cães é proibida em unidades de conservação. Culpa do tutor e não da cobra, que estava em casa.

Jiboias, jararacas, jararacuçus e outras cobras são abundantes na Floresta da Tijuca e não raro se aventuram em seus arredores, na quase totalidade das vezes sem sequer serem percebidas. Dentre as 23 espécies da floresta, a maior é a jiboia, mas as caninanas, rápidas e curiosas, podem ficar grandes, chegar a cerca de dois metros.

— Uma caninana pode entrar e sair de uma casa sem ser notada. Mas essas cobras precisam de atenção, pois podem ser agressivas se perturbadas, embora não sejam venenosas. Quem mora perto e frequenta a floresta precisa ser atento, mas é um preço pequeno pelo privilégio — afirma Aximoff.

Entre as cobras não venenosas do PNT e seu entorno há a bicuda, corredeira, dormideira, cobra d’água e falsa jararaca. Entre as venenosas, a mais letal é a coral verdadeira. Há ainda jararacas e jararacuçus em quantidade.

Algumas delas superam com facilidade a píton em tamanho. Principalmente as jiboias, explica a coordenadora de pesquisa do Parque Nacional da Tijuca, Katyucha Von Kossel de Andrade Silva.

—Já vimos jiboias de mais de dois metros — diz ela.

As buscas à píton reuniram bombeiros, os funcionários do PNT e especialistas. Mas procurar cobra na floresta é a materialização do adágio catar agulha em palheiro.

Porém, misteriosamente, quis o destino que entre as tantas cobras do parque nacional, calhasse de, no fim da quarta-feira, 8 de março, um cachorro fosse encontrar justo a píton.

Não se sabe se, assim como os bombeiros, o cachorro achou que a píton fosse uma jiboia. Mas isso não fez a menor diferença para a cobra, que se estropiou do mesmo jeito. Ela foi mordida e abocanhada. O cão invasor voltou para casa com a cobra viva e a presenteou ao tutor, um morador do Alto. Quem é o cão capaz de tal façanha, os bombeiros não contaram.

O tutor chamou os bombeiros. Estes levaram a cobra para os cuidados do veterinário Jeferson Pires, chefe do Centro de Recuperação de Animais Selvagens do Rio de Janeiro, da Universidade Estácio de Sá (CRAS/Unesa). A cobra já chegou nas últimas e morreu na quinta-feira. Uma necrópsia revelou que não tinha chip de identificação. Isto é, era ilegal. Tão irregular quanto o cão que caçava na floresta onde sua entrada é proibida.

Foi o fim da píton, mas não da história. Os bombeiros não explicaram o que fazia um cachorro onde cães não podem entrar nem tampouco quem é o dono dele. Também foi assunto das rodas de conversa de frequentadores do PNT como uma cobra, mesmo ferida, se deixou levar pelo cachorro. Quase sempre são os cães que morrem em agonia atroz ao serem atacados por cobras. O CBMERJ diz que “uma sindicância apura as circunstâncias do caso”.

— Muita gente não entende que põe seu cão em risco ao permitir que entre na floresta. O cão coloca a fauna silvestre em perigo, mas ele mesmo é uma vítima da falta de responsabilidade dos tutores. Todos esses animais sofrem por atos dos seres humanos — salienta Andrade Silva.

Sinal de que falta consciência e alheio a píton e regras ambientais, um homem tentou entrar há alguns dias no PNT para fotografar seu galo de estimação na Vista Chinesa. Informado pelos guardas de que a entrada de animais domésticos era proibida pelo bem deles e da fauna local, ele retrucou que seu galo podia entrar porque era uma celebridade tik-toker com milhares de seguidores. Em vão. Os guardas despacharam para casa o galo influencer e seu dono.

O desfecho da história da floresta depende de moradores da cidade repensarem a relação que mantêm com a natureza que dizem amar, mas não sabem cuidar.

— Essa história é uma crônica do desequilíbrio ambiental, emblemática de como ainda lidamos mal com a natureza — enfatiza Rheingantz.

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