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Por Camila Araujo — Rio de Janeiro

Todo dia elas fazem tudo sempre igual. Às 6h da manhã, Roberta Renê acorda a filha Alice do Nascimento, de 8 anos. Ainda com sono, a menina toma banho e, antes do uniforme do colégio, veste o collant do balé. Com escova, elástico e alguns grampos, a mãe faz o tradicional coque de bailarina. No sofá da sala, as duas acompanham, pela TV, o trânsito que as espera ao longo das próximas horas: de Santa Cruz, na Zona Oeste, até o Centro do Rio. São 130 quilômetros e cerca de quatro horas por dia, contando ida e volta.

A rotina da família precisou mudar desde que Alice passou no concurso da Escola de Dança Maria Olenewa, do Theatro Municipal, neste ano. Entre as três baldeações que incluem até almoço no chão do metrô, o esforço é em nome do desejo da menina de um dia se tornar bailarina profissional.

Ela não é a única nessa empreitada. Da escola de Alice, em Santa Cruz, elas seguem para outra escola para buscar Sophia Castro e Eloá Macruz, também de 8 anos. As três são da mesma turma de balé no Theatro Municipal e já dividiam a sala de aula de um projeto de dança oferecido pela Ternium, uma empresa siderúrgica que atua no bairro. A professora Tainá Romanelli percebeu um diferencial nas meninas e sugeriu que os pais fizessem a inscrição no Municipal.

— Elas levam a sério, eu via um brilho diferente no olhar delas quando diziam que queriam ser bailarinas profissionais. O dia que saiu o resultado foi uma festa. É muito mais do que passar numa prova. É sobre acreditar nelas mesmas, ultrapassar os obstáculos — conta Tainá.

De ponta a ponta: o trajeto das bailarinas de Santa Cruz

De ponta a ponta: o trajeto das bailarinas de Santa Cruz

O trajeto

No carro de aplicativo, Roberta e mais uma ajudante buscam, após a aula, primeiro Alice, e depois Eloá e Sophia em outro colégio. Dali elas seguem para a Avenida Brasil, onde pegam um ônibus até Coelho Neto. As meninas sentam juntas, de preferência em um banco atrás, onde a gargalhada é garantida a cada pulo que dão com os quebra-molas do caminho. Cerca de uma hora depois, elas recolhem as mochilas com pressa e descem a passos rápidos para o metrô. É lá que tudo acontece.

—Organizamos meia, penteado, fita, coque. No Theatro eles são rígidos, então, é uma força-tarefa para ver se está tudo certo e impecável com elas — conta Roberta.

Assim que as portas do vagão se abrem, elas correm para um dos cantos e sentam no chão. Com agilidade, tiram o tênis, colocam a sapatilha, ainda sem ponta, e fazem com cuidado o laço na fita de cetim que amarram aos pequenos tornozelos. A mãe de Alice tira da bolsa três marmitas, que distribui para cada uma das meninas. Entre uma colherada e outra, conversam e implicam, de brincadeira, uma com a outra.

De barriga cheia, as meninas otimizam o tempo de viagem se alongando. As três cantam juntas a musiquinha que aprenderam na aula: “flex, ponta, en dehors” (em francês, “para fora”), e reproduzem os movimentos. Elas gostam das princesas da Disney, principalmente Bela, de A Bela e a Fera, e Rapunzel. No balé, a referência é a mesma: Ana Botafogo. Sobre superpoderes, elas também concordam.

— Se eu pudesse escolher um, seria teletransporte — afirma Sophia.

Perto de chegar à estação Cinelândia, todas estão a postos com mochilas nas costas.

—É longe! Finalmente estamos chegando — diz Alice, enquanto Eloá adianta os próximos passos:

—No teatro a gente sobe, vai ao banheiro, escova os dentes, depois aquece para a aula.

Saindo do metrô, elas sobem as escadas em direção ao Theatro Municipal. No rol de entrada, formam a fila das bailarinas e logo são levadas para a sala de aula. “As meninas de Santa Cruz” ficaram conhecidas assim na turma Preliminar I, da qual fazem parte há pouco mais de um mês.

— Estão aprendendo o básico, o que é ponta, a nomenclatura do balé, a disciplina de todo dia estar aqui, o que não é fácil para a criança. Muitas enfrentam uma rotina intensa, de almoçar no transporte, trocar de roupa no caminho. Mas o balé não é puro sofrimento, é puro prazer — conta a professora Sabrina Germann.

A etapa, que dura um ano, é eliminatória. Os professores avaliam questões ortopédicas e de flexibilidade durante o período.

—Nesse momento a gente avalia condições físicas, como a possibilidade de aumentar amplitude, extensão, se o pé consegue esticar. Estando aptas, seguem na formação, que dura nove anos — explica o diretor artístico do Balé do Theatro Municipal, Helio Bejani.

Dedicação tamanho família

Na casa de Sophia, o ritual começa às 5h30, quando a mãe, Michelle Castro, acorda a menina para fazer o coque.

— É um tempinho sagrado que a gente tem juntas. Ela está encantada, mas são altos e baixos. Tem dias que chega elétrica, contando o que aprendeu; em outros, mais cansada. É um esforço e um sonho da família toda — conta Michelle, que é técnica de enfermagem.

Mas manter a rotina tem um custo. A mãe de Eloá, Abgail Macruz, de 29 anos, diz que gasta pelo menos R$700 só de transporte, contando com o carro que leva até a Avenida Brasil, as passagens de ônibus e o mototáxi que busca a filha no fim do dia. Fora a alimentação e o uniforme da escola.

— Eu consegui um emprego para conseguir manter a Eloá no balé. Sou mãe solteira, tenho ajuda da minha mãe e irmãos. Vale a pena pela alegria que eu vejo nela — afirma a agente de educação especial que, no ano passado, levou a filha para assistir ao espetáculo de uma turma do balé do Theatro.

— Ela apontou para a bailarina e me disse “mãe, está vendo aquela bailarina no palco? Um dia vai ser eu”. Vi ali muito desejo e força de vontade nela.

No fim da aula, por volta das 15h, as meninas se organizam com rapidez para o retorno para casa:

— Daqui eu vou para a explicadora e depois para casa ver desenho — conta Sophia.

Já Alice tem outros planos:

— Vou descer para brincar no pátio do condomínio.

No trajeto da volta, as próprias meninas desfazem, grampo a grampo, os coques. O cabelo embola na escova e é motivo de riso. Na fila do ônibus, Eloá decide comprar um sonho (o doce), que divide com Alice. A viagem só termina depois do pôr-do-sol, quando as meninas se separam e finalmente descansam, até começarem tudo de novo no dia seguinte.

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