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Por Felipe Grinberg e Rafael Galdo — Rio de Janeiro

Pesquisadora e há 21 anos cirurgiã maxilo-facial do Hospital Central da Polícia Militar do Rio, o HCPM, a tenente-coronel Adriane Maia estuda os impactos dos ferimentos por arma de fogo entre policiais do estado, sobretudo, aqueles atingidos na face. Das centenas de relatos que já ouviu, ela lembra de lesionados no rosto que não foram mais reconhecidos pelos filhos. A médica apresenta ainda números que indicam o tamanho do sofrimento vivido por essas pessoas. Sete anos após um tiro na face, levantou, 42% das vítimas ainda enfrentam o transtorno de estresse pós-traumático. Confira a entrevista de Adriane à série "Mutilados".

Qual o cenário hoje da vitimização do policial militar no Rio de Janeiro?

Sobre a vitimização por arma de fogo entre os policiais, eu gostaria de dar um passo anterior. O Brasil está entre os dez países com maiores índices de homicídio no mundo. E entre esses homicídios, mais de 70% são perpetrados por arma de fogo. Então, é um país de alto risco de violência armada para todas as pessoas. Obviamente, também são alvo aquelas profissões, como no caso os profissionais de segurança pública, que lidam de frente com a violência. De 2015 a 2022, levantando apenas os policiais feridos por arma de fogo atendidos no HCPM, foram 756 policiais da ativa feridos, que não morreram. Pode-se somar a esse número, então, tantos outros que, infelizmente, foram a óbito.

O que significam esses números se comparados com outros lugares?

É sem precedentes quando a gente compara com outras polícias no Brasil e no mundo. Para ter uma ideia, o FBI (Federal Bureau of Investigation), órgão que sistematiza dados de ferimentos por arma de fogo (nos Estados Unidos), apontou, num conjunto de 556 mil profissionais de segurança pública, 260 ocorrências em 2019. Isso é o que a gente tem apenas entre os atendidos no HCPM numa polícia, a Polícia Militar do Estado do Rio. É muito dramático, porque também precisamos pensar no processo de readaptação desse policial.

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A pesquisa aponta em que momentos esse policial costuma ser ferido?

No Rio, a mortalidade acontece mais quando o policial está no período de folga. Entretanto, a morbidade, ou seja, o ferimento que não mata, acontece 76,5% nos casos de acidente de trabalho. É bem verdade que a arma de fogo é o instrumento mais comum pelos quais são perpetrados ferimentos em policiais no mundo todo, menos no Reino Unido, onde é o acidente automobilístico. Mas nenhuma (polícia) tem números tão absurdos como os do nosso estado.

A senhora acredita que o peso e a quantidade do armamento nas ruas, nas mãos dos criminosos, influenciam diretamente que as consequências sejam mais graves?

Sem dúvida. Este ano, por exemplo, a polícia do Rio bateu recorde de fuzis apreendidos. E quanto mais se tem esse tipo de arma, mais se produzem ferimentos incompatíveis com a vida, o que aumenta muito o risco do policial. É importante também ressaltar, por exemplo, que os Estados Unidos têm uma grande quantidade de armas em circulação. E estudos apontam que os estados que adotaram maior permissividade para o uso da arma de fogo, também identificaram o maior número de pessoas civis e profissionais de saúde e de segurança feridos por arma de fogo. Então, quando pensamos num aumento da circulação de arma de fogo no país, obviamente precisamos saber que as consequências podem ser maiores tanto entre civis quanto entre policiais.

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Sobre o perfil do ferido no Rio, o que se observa?

Eles são 97,5% homens, especialmente soldados e cabos, e pardos e negros. Quanto à localização dos ferimentos, eles acontecem 41% nos membros superiores, 33% nos membros inferiores, e o restante na cabeça, no tórax ou na face. Ferimentos por arma de fogo podem produzir sequelas muito graves, como amputação de membros. Infelizmente, também temos um número altíssimo de perda de olhos, de redução de olfato, perda de segmentos na face, como mandíbula, maxila, dentes, o que dificulta a fala e a mastigação desse paciente.

De onde vêm as vítimas feridas por arma de fogo no HCPM?

A partir do levantamento feito dos policiais feridos e atendidos no HCPM, principalmente da Baixada Fluminense e da Zona Norte da cidade do Rio. São áreas de maior densidade populacional. Isso é uma relação direta também. Vêm ainda de batalhões próximos a comunidades mais conflagradas. Os batalhões mais acometidos são os que compõem as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e os de operações especiais, no caso, o Bope. Então, são os policiais que estão, de fato, em áreas conflagradas ou em situações de maior risco.

Sobre o ferimento na face, que é uma área do corpo muito simbólica, quais as repercussões na vida da vítima?

A face é uma área muito central, tanto no reconhecimento da pessoa como indivíduo, como ela é reconhecida, e também na questão dos sentidos. Então, os ferimentos na face repercutem dramaticamente na sociabilidade e na capacidade desse policial ferido se relacionar e de viver. Observamos um comportamento de autoisolamento muito grande desses policiais, o que, obviamente, repercute em toda sua dinâmica familiar. Infelizmente, há relatos de filhos que não reconheceram os pais após o tiro na face, que não quiseram vê-los, ou que choraram ou fugiram quando os viram. Imagina o tamanho da dor que isso significa.

Psicologicamente é devastador...

O estudo que fiz aponta que, sete anos depois do ferimento em face, 65% dos desses policiais ainda têm sofrimento psíquico, e 42% têm transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). É muito triste de ver a trajetória de luta, tanto desses policiais, quanto das suas famílias, para se reinventarem na história e na vida. Olhar no espelho se torna muito mais difícil. Na pesquisa, são frequentes relatos de que, toda vez que eles se olham no espelho, muitos lembram de novo do trauma sofrido.

Há algum caso que emocionou a senhora ao longo de sua carreira?

Eu poderia contar várias. Mas me lembro de um dia em que fui chamada num sobreaviso, num domingo à noite, era um policial ferido na região da (Autoestrada) Grajaú-Jacarepaguá. Ele estava muito grave, com um ferimento de face. Subimos para o centro cirúrgico. Foram muitas horas de operação. Quando descemos, tivemos a notícia de que sua esposa estava grávida de três meses. Ficou aquela questão. Como falamos com essa mãe? Esse policial quase foi a óbito. Felizmente, ele sobreviveu, mas com todas essas dificuldades de se ressocializar, de se colocar de novo na sociedade, com repercussões emocionais. Inclusive, fiquei muito feliz outro dia ter visto o filho dele grande. Foi emocionante.

Além do impacto na saúde mental, que outros problemas essa pessoa costuma enfrentar?

Os dados mostram também aumento enorme nesses pacientes de hipertensão, de diabetes, de doenças gastrointestinais, de queixas de cefaleia constante... Você percebe várias dessas doenças psicossomáticas, que envolvem esse drama contínuo. Infelizmente, alguns deles também tentaram suicídio. Obviamente, esses pacientes são encaminhados à psicologia, que faz um trabalho muito importante para o cuidado desses policiais.

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Pelo menos empiricamente, no trabalho da senhora no HCPM, é possível saber quantos sobrevivem a um tiro de fuzil?

Um projeto de fuzil na face é incompatível com a vida. A menos que esse projétil resvale em algum lugar, perca a energia e vá para face do policial. Essas armas muito potentes, como a gente vê no Rio. oferecem um risco altíssimo para toda a população, civis e policiais.

E como é a reabilitação desses feridos?

Amputações são sempre muito dramáticas. A reabilitação na face da mesma forma. Os policiais feridos em face passam, em média, por pelo menos quatro cirurgias. A gente tem um trabalho de reabilitação desses policiais. Só que, obviamente, a gente sabe das limitações, em virtude exatamente desses tipos de ferimentos cada mais graves, para conseguir readaptá-los totalmente. No caso de ferimentos de face, o número de policiais que retornam ao trabalho é muito diminuto: 74% deles não retornam para a atividade fim. Eles são reformados ou remanejados em atividades meio.

Como é a experiência de trabalhar num hospital como o HCPM?

Trabalhar no Hospital Central da Polícia Militar é um desafio, mas a gente guarda também um senso de responsabilidade muito grande, porque o nosso dever é cuidar da saúde do policial militar. Então, digo não só por mim, mas pela equipe que eu presencio há 21 anos ali, a dedicação para que esses policiais sobrevivam e vivam bem e da melhor forma possível. Infelizmente, os números de cirurgias maxilofaciais por arma de fogo no nosso serviço são um dos maiores do mundo. Não digo isso com alegria. Mas isso diz muito sobre os desafios que a gente enfrenta.

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