Funcionária de uma empresa na Rua Furquim Mendes, principal via da favela de mesmo nome, X. narra a rotina de um passado recente: para que caminhões da sua loja pudessem atender clientes fora da favela era preciso tirar e recolocar barricadas, numa espécie de acordo de cavalheiros com os traficantes da facção criminosa que impõe suas leis na área. Levantamento exclusivo feito pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria da Polícia Militar, a pedido do GLOBO, revela que a comunidade, cravada no Jardim América, bairro da Zona da Leopoldina do Rio, é de onde a corporação retirou mais obstáculos nos cinco primeiros meses deste ano: 152 — incluindo a vizinha Dique —, ou um, em média, por dia.
Em todo o estado, o estudo mostra que 2.055 barreiras foram removidas, o equivalente a mais de 13 por dia ou uma a cada duas horas, de 1º de janeiro a 31 de maio, que somam 2.126 toneladas. No contra-ataque, no ano passado, a PM adquiriu cinco “kits demolição”, com retroescavadeira, veículo-prancha de transporte do maquinário e caminhão basculante. E o secretário da PM, coronel Luiz Henrique Martinho Pires, anuncia a possibilidade de comprar mais kits e de passar a usar drones para auxiliar o setor de inteligência da corporação no enfrentamento às barricadas.
— Podemos fazer monitoramento através de drones, num trabalho com a inteligência. A gente tem que avaliar o cenário, o momento que em que esses obstáculos são colocados. A retirada de uma barricada é um pedaço de uma ação. Podemos utilizar aeronaves para melhor estruturar o combate — diz o secretário.
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No início de junho, o governo federal entregou seis drones, ampliando para nove a frota da Polícia Militar. Para que possa ter habilidade na operação dos equipamentos, o Grupamento Aeromóvel (GAM) da corporação dará, este mês, um curso para 48 PMs e outros dois agentes do setor de segurança.
Localizada no Dique, é a Rua Renascer que concentra mais trincheiras removidas: 38. Entre todos os batalhões, o 16º BPM (Olaria) foi o que somou mais obstáculos destruídos. Lá estão Furquim Mendes e Dique, e ainda Quitungo e Guaporé (Brás de Pina) e o Complexo de Israel (Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas, em Cordovil; Vigário Geral; e Parada de Lucas).
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Mais de 62 mil denúncias
Já estudo do serviço Disque Denúncia contabiliza 62.240 relatos de barricadas, de 2016 ao fim de 2022. Do início do ano até 27 de julho, foram cadastrados mais 4.890. “As barricadas, que inicialmente eram dentro de comunidades, estão sendo montadas cada vez mais em ruas de acesso, fazendo um bloqueio completo de uma determinada região controlada por criminosos”, destaca documento do Disque Denúncia.
São Gonçalo (12.893), Rio de Janeiro (12.090) e São João de Meriti (7.754) são os municípios com mais registros de 2016 a 2022. Dos bairros, na frente do ranking estão Anchieta (952), Bangu (949) e Pavuna (468).
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O relatório do Disque Denúncia informa ainda que, embora não seja uma prática comum, no seu banco de dados já constam informações sobre trincheiras em áreas de milícias e narcomilícias (em que milicianos atuam em parceria com traficantes), que representam 3% do total.
Valas no caminho
Mais recentemente, valas passaram a ser construídas para tentar obstruir a passagem de veículos, até em vias principais da área formal, como a Rua Jorge Coelho, em frente à estação de Cordovil, de trem. A imagem foi postada em rede social e reproduzida no GLOBO. Na quarta-feira passada, o fosso foi tapado, numa ação conjunta entre a PM e a prefeitura. No mesmo dia, outras cinco valas foram fechadas nas favelas Cinco Bocas e Cidade Alta, do Complexo de Israel, controlado pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão.
— Tem a barricada de trilho, pneus, tronco de árvore, concreto, e tem essa de fazer o buraco no asfalto. Eles vão tentando, cada vez mais, criar dificuldades para evitar o acesso do estado nas comunidades e buscar garantir o seu domínio territorial. Falo do estado como um todo. Não só da polícia, mas do socorro médico, da coleta de lixo — afirma o secretário da PM.
Segundo X., outra vala na Rua Furquim Mendes, nas proximidades da Rua Debussy, também coberta, impedia que caminhões de sua empresa acessassem por ali o trecho do Jardim América fora da favela:
— Agora, tem um blindado morando aqui. Nossos motoristas entram e saem sem ter que tirar e recolocar barreiras. Mas será que a polícia vai ficar aqui para sempre? É preciso encontrar uma solução mais definitiva para que as pessoas que moram ou trabalham nas comunidades tenham paz.
Ocupação contra roubo de carga
Comandante do 16º BPM, tenente-coronel Lourival do Nascimento Júnior, conta que Furquim Mendes e Dique, favelas asfaltadas e com comércio forte, estão ocupadas, dia e noite, desde 9 de maio.
— Na minha área, essas comunidades eram campeãs de roubo de carga, principalmente, e de carro. Com a ocupação, houve redução de 99% do roubo de carga na região, ou seja, no Jardim América e no entroncamento com a Via Dutra e a Avenida Brasil — afirma ele.
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O comandante explica que, mesmo com a ocupação, a ousadia dos bandidos é tanta que chegaram a recolocar alguns obstáculos retirados:
— No início, sim. Mas vamos voltar lá, com o nosso maquinário, para remover barricadas remanescentes.
Morador de uma rua de acesso à Furquim Mendes desde que nasceu, S. optou por se mudar para o interior para fugir da violência. Mas como a mãe ainda vive e ele tem amigos no lugar, volta e meia está por ali.
— Chego na casa da minha mãe e não saio para nada. Os bandidos estão roubando morador. A violência desenfreou. No passado, os criminosos tinham medo da polícia, se escondiam. Hoje, eles enfrentam — lamenta ele.
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Só que os dados do levantamento da Subsecretaria de Inteligência da PM evidenciam que nos municípios de Campos e Cabo Frio o número de barricadas retiradas nos primeiros cinco meses deste ano chegou a 233 e 144, respectivamente.
— Diferentemente do Rio e da Região Metropolitana, por enquanto o que encontramos muito no interior é entulho, lixo — explica o secretário da PM.
Barricada como crime
No Legislativo, uma proposta aprovada na Câmara Federal na legislatura anterior, que tramita no Senado, pode incluir a barricada como crime. O ex-deputado Subtenente Gonzaga (PSD/MG) teve uma emenda incorporada ao Projeto de Lei 5365/2020, que trata da tipificação do crime de “domínio de cidades”, cujas condutas são conhecidas como “novo cangaço”.
— Entre as condutas que seriam enquadradas no conceito de “intimidação violenta”, que trata a emenda, está o domínio de território para a prática de crime ou em razão dele, que, acreditamos, alcançaria as barricadas. Para deixar mais claro, estou pedindo para incluir “com obstáculo físico ou não” — diz o ex-deputado, que é da reserva da PM mineira.
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Ex-chefe do Estado Maior da PM do Rio, o coronel da reserva Robson Rodrigues ressalta que, apesar de as barricadas não acabarem, assim como os crimes, cabe ao poder público desfazê-las, para que sejam reduzidas e estejam sob controle.
— Elas não vão acabar, simplesmente porque a polícia não vai estar em todas as comunidades as 24 horas do dia. Mas é possível controlar o problema de forma que atinja patamares civilizados. É importante investigar, observar, ter uma boa comunicação com a população, estimulando a delação. E não é só prendendo em flagrante, mas impedindo a continuidade. Quando o cimento estiver fresco, a estaca tiver mole, você retira que é mais fácil.
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