Rio
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Por Bruna Martins — Rio de Janeiro

Sentado em um quiosque em Copacabana, Willian, de 18 anos, relembra parte da infância no Rio de Janeiro. A fala ligeira, com sotaque acentuado no “r”, é interrompida pela presença de uma criança negra, que não parece ter mais de 5 anos: “Oi, tio, desculpa atrapalhar. Você pode me ajudar com essas balas?” O rapaz se perde por alguns segundos, olha atento o menino, espera pela despedida e completa: “Eu era ele”.

Ao lado de Willian estavam seus pais, Olivier Descharles, de 44 anos, e Guilhaume Mathieu, de 40, além dos irmãos Rodrigo, de 17, e Kauã, de 15. Os cinco passam férias de um mês no Rio, pela primeira vez desde a adoção dos meninos, em 2015. Há oito anos, eles moram em Cerisé, distrito com 873 habitantes na Normandia, no Norte da França, local de origem do casal. A visita também marca o primeiro Dia dos Pais na cidade onde tudo começou.

Willian nasceu na Baixa do Sapateiro, comunidade no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. Tem sete irmãos, todos de pais diferentes. Passou os primeiros anos de vida na casa de uma tia materna, lembrada por ele com carinho. Com a prisão dela, em 2012, todos voltaram aos cuidados da mãe, que vivia em situação de rua. A falta de um lar acabou separando as crianças e Willian, um dos mais velhos, foi morar com ela, no terminal rodoviário da Central do Brasil, na Avenida Presidente Vargas. Rodrigo e Kauã, com 4 e 5 anos respectivamente, ficaram sob os cuidados de vizinhos na Maré.

‘Abrigo, não!’

Aos 7 anos, o menino andava, sozinho, pelo centro do Rio. Carregava uma caixa de balas, e o compromisso de voltar sempre com a embalagem vazia. No final de 2012, foi recolhido junto aos sete irmãos e levado, na companhia da mãe, para a 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital. Dali, se separaram: uns seguiram para famílias acolhedoras, outros, deixados para tutela ou adoção.

— Eu me lembro da minha mãe dizer que tinha perdido a nossa guarda. Ela estava triste, e eu chorava muito. Cheguei a morder o braço de um homem que trabalhava na Vara. Ele estava me segurando e não deixava eu me aproximar dela. Meu maior medo era ir para um abrigo. Comecei a gritar: “Abrigo, não! Abrigo, não!”. Achava que abrigo era o lugar onde prendiam os meninos de rua, mas depois eu vi que não era nada disso — conta Willian.

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Depois da dura despedida da mãe, Willian, Rodrigo e Kauã foram mantidos juntos e levados para uma família acolhedora, onde moraram por três anos. A casa, dividida com outras crianças, ficava em Vigário Geral, também na Zona Norte. Do local, os irmãos guardam memórias de afeto.

— Eu achei que ia ter dificuldade para me adaptar, mas foi tudo bem. Tinha muita criança lá e eu estava com os meus irmãos, estávamos seguros. A gente nem pensava muito em adoção. Acho que eu esperava mais ficar com a Tia Graça (“mãe” do abrigo), que já tinha adotado uma menina mais velha — comenta Willian. A expectativa dos irmãos surgiu quando foram avisados sobre um casal interessado em conhecê-los.

Na França, Olivier e Guilhaume, casados havia sete anos na época, planejavam ter filhos. Começaram a ler livros sobre adoção e a estudar o funcionamento da prática na França, quando foram impactados pela burocracia local. Na pesquisa, passaram a cogitar participar de processos internacionais, como os intermediados pela Confederação Francesa de Adoção (Cofa), organização que ajuda crianças e adolescentes de nove países, incluindo o Brasil, a encontrarem um lar. A entidade tem o apoio da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional (Cejai), do Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ), cujo presidente, o desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, destaca a importância do órgão na formação de novas famílias.

— Eles merecem fazer parte de uma família amorosa, ter carinho, amor, atenção e acesso a tudo de que precisam para poderem construir um futuro brilhante. E o Tribunal de Justiça do Rio atua sempre, dentro da lei, em busca de lares para a formação de novas famílias — comenta o desembargador, lembrando ainda da importância do comprometimento da sociedade com crianças e adolescentes.

A ideia de adotar uma criança brasileira agradou ao casal, que compartilhava uma visão positiva sobre a hospitalidade e a cultura do país. Aceitaram ajuda da Cofa e, em pouco tempo, receberam relatórios de algumas crianças disponíveis. Quando bateram os olhos na história e em uma foto dos sorridentes irmãos Willian, Rodrigo e Kauã, não tiveram dúvida. Cartas e presentes deram início ao contato com os três.

— Eu lembro que meu pai tinha dito que gostava muito de um dos filmes da trilogia “O Hobbit”, da saga “O senhor dos anéis”, e esse era um dos meus preferidos. Eu disse que adorava musse de maracujá, estrogonofe e que sonhava em conhecer Nova York — lembra Willian, fã número 1 das cantoras Ludmilla e Ivete Sangalo. Ao lado dele, Olivier explica ter aprendido a fazer o prato e outras receitas brasileiras para agradar aos filhos.

Em 6 de outubro de 2014, Guilhaume e Olivier foram surpreendidos por um e-mail com o assunto “vos enfants” (suas crianças), confirmando a adoção. A notícia foi recebida com choro pelo casal, aliviado pelo fim da incerteza no processo.

Daquela data até abril de 2015, os cinco mantiveram contato à distância. No dia 15, véspera do aniversário de 10 anos de Willian, o casal viajou até o Rio para encontrar os filhos pela primeira vez. Ficaram hospedados em Ipanema por dois meses, “testando” a convivência. Os franceses estavam há um ano estudando português e nunca haviam visitado o país.

Chegada à França

Na França, uma casa com quatro quartos, tios, avós e primos os esperava. A família comenta não ter tido dificuldade na adaptação. Em três meses, os pequenos já eram fluentes em francês, foram matriculados na escola e não tiveram problema para fazer amizade.

Hoje, Willian fala quatro idiomas. Quando o período de férias acabar, voltará à França com data para começar a universidade de Comunicação Multimídia, essencial para seguir a carreira de cinema. Em abril deste ano, produziu um desfile, onde costurou todas as roupas apresentadas. Rodrigo e Kauã falam pouco português, mas querem, respectivamente, seguir nas áreas militar e de enfermagem.

— A gente sente uma admiração imensa pelos nossos filhos. Não conseguimos nem imaginar como deve ser aceitar pais diferentes, de um lugar diferente, uma nova casa, cultura e país. Eles foram muito corajosos, é emocionante olhar para trás e se lembrar de tudo — diz Olivier.

Atualmente, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 251 crianças à espera de adoção no Brasil (número referente à última sexta-feira, dia 11). Delas, 182 tinham mais de 8 anos, cerca de 72%. Contudo, segundo a lista de 3.062 pretendentes, a preferência pela adoção é das crianças até os 6 anos, opção de 73% dos pais candidatos.

De 2022 até agora, usando o CNJ como base, 355 crianças e adolescentes foram adotados no Estado do Rio de Janeiro, número maior do que a soma das adoções de 2020 e 2021, período da pandemia, quando 309 jovens ganharam um novo lar.

Ao voltarem para a França, na próxima terça-feira, Willian, Rodrigo e Kauã terão mais do que os pontos turísticos cariocas como recordação: vão lembrar do primeiro Dia dos Pais na cidade onde a família Descharles Mathieu ganhou três filhos.

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