"A ginga é o coração da capoeira", diz Mestre Camisa, de 67 anos, um dos grandes divulgadores da modalidade pelo mundo. E numa região pulsante da Lapa, no Centro da cidade, o baiano vai conduzir, a partir de hoje, o maior evento do planeta voltado ao gênero afro-brasileiro que une dança e luta: o Festival Internacional Arte Capoeira, criado pelo seu Grupo Abadá. Mais de duas mil pessoas são esperadas, até domingo, na Fundição Progresso (Rua dos Arcos 24). Será a primeira edição presencial, desde 2019.
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— Capoeira é energia viva. É uma arte que fortalece o espírito e desenvolve os aspectos culturais, sociais, terapêuticos... Vai voltar o prazer de encontrar, de abraçar, lembrar o passado. Já aconteceram aqui dezenas de rodas, treinamentos. Ela também dá valor ao que é folclórico, esportivo, marcial. Trabalhamos a poesia, a acrobacia, a história... Além disso, no evento vamos ensinar a fabricar os instrumentos como atabaque e berimbau, também haverá formatura de treinadores — diz o mestre, cujo nome de batismo é José Tadeu Carneiro Cardoso. — Em homenagem aos 300 anos do Aqueduto dos Arcos, vamos fazer uma coreografia com centenas de pessoas.
Mestre Camisa leva à Lapa, a partir desta sexta, o maior evento de capoeira do mundo
Patrimônio Imaterial
Abadá, em yorubá (língua nigero-congolesa), significa o traje dos africanos usado para orações e festas. Na língua, a palavra também remete à expressão "para sempre". Por todos os sentidos, Mestre Camisa resolveu incorporá-la e criar a sigla para sua Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte Capoeira. E no encontro que se inicia nesta sexta, o grupo cantará versos que tratam de um tema específico para este ano: saúde mental. A cantiga foi composta por todo o grupo, cada um agregando um verso, mostra de como é fundamental a construção coletiva.
— Nos anos de pandemia, fizemos muitos encontros virtuais. E a saúde do corpo e essa energia influem muito a saúde da mente. É um assunto fundamental para todos. E na capoeira, para a roda funcionar, tudo tem que estar em harmonia. Tudo é busca de equilíbrio — enfatiza Mestre Camisa.
A arte está na vida do professor desde a infância. Embora more no Rio há 50 anos, ele cresceu em Jacobina, na Chapada Diamantina. Na época, ouvia falar da mística dos capoeiristas baianos. Com a mudança da família de nove irmãos para a capital, o irmão velho, Camisa Roxa, começou a treinar e José Tadeu absorveu o interesse. Como em Salvador havia festas na rua e nelas era comum jogar capoeira angola (a antiga e tradicional), Mestre Camisa se contagiou.
— Cheguei ao Rio em 1972 com um espetáculo, para fazer um show no Canecão (antiga casa de show de Botafogo, na Zona Sul). Mas comecei criança, passei pela capoeira de rua, pela capoeira angola, pela regional... Elas se desenvolveram em diferentes sentidos, até na forma de jogar: de um jogo no chão para um jogo mais acrobático — lembra o nordestino.
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No passado, ao ver seu interesse e ao se preocupar com as saídas de José Tadeu para a rua, a família decidiu colocá-lo numa academia para ele ter as primeiras noções num lugar de mais proteção. O baiano aprendeu a prática com Mestre Bimba (nascido no século XIX), quem fundou as primeiras escolas da arte no Brasil. Antes, ela era ensinada coletiva e informalmente. O professor de Camisa foi ninguém menos do que quem apresentou a capoeira a Getúlio Vargas, cerca de 40 anos antes, em 1930, e fez com que ela fosse transformada em esporte. Desde 1890 àquele ano, devido à herança de governos colonialistas, a capoeira foi vista como crime quando, na verdade, era instrumento de resistência das pessoas escravizadas.
Crescimento exponencial
Oitenta e quatro anos depois da descriminalização, a capoeira continuou alçando glórias e foi reconhecida pela Unesco, em 2014, Patrimônio Cultural Imaterial. E para manter as raízes, Mestre Camisa e os mais de 800 professores que formou fazem milhares de estrangeiros aprenderem português para levar essa raiz mundo afora, sem interferências da tradução. Muitos deles estarão aqui só para o evento da Lapa, sucessor ao festival da semana passada na sede da Abadá, em Cachoeiras de Macacu, Região Metropolitana do Rio. É o caso das irmãs alemãs Lilith e Noemi Golovtchiner, de 21 anos, rebatizadas Monica e Magali (como as personagens dos quadrinhos de Mauricio de Sousa) pelo grupo de capoeiristas.
— A gente treinou em Berlim ao longo dos últimos anos, desde a nossa infância, aprendíamos com ele de longe. E viemos aqui para aprender mais. Aprendemos português pequenas, por conta da capoeira. Vamos voltar para lá e trabalhar com isso — frisa Monica.
Outra estrangeira apaixonada pela prática, a japonesa Satono Ikezoe, rebatizada Codorna pelos colegas brasileiros, veio ao país porque no seu território o gênero ainda precisa ser reforçado. Ela, então, será uma das propulsoras dessa corrente.
— No Japão, ainda não consegui evoluir em muitas competições porque tem pouca gente. Precisei vir para aprender e treinar mais. Vou ficar dois meses — explica a asiática, timidamente arranhando português.
Assim, mais de 30 mil pessoas no planeta já aprenderam com os treinos de Mestre Camisa, que enfatiza que treinar no idioma é uma maneira de não deixar a prática suscetível a hibridizações.
— É importante que conheçam as expressões. Não se pode traduzir. E quero chamar atenção para uma coisa: uma turma quer levar a capoeira para o lado o esportivo, outra para o marcial, outro para a ginástica. Ela é tudo isso sem perder a identidade. Por isso, para mim, a arte é a palavra mais fantástica e que não denomina qualquer coisa. O canto, a dança, a acrobacia e a luta compõem um conjunto e um não ofusca o outro. É isso que muita gente no Brasil não percebe: a capoeira é muita coisa e por isso é patrimônio imaterial da humanidade. Nenhum esporte olímpico é, assim como nenhuma arte marcial milenar é. E nós ainda temos dificuldade de mobilizar gente pela capoeira. É mais fácil eu implementar a capoeira numa universidade na Inglaterra do que aqui no Brasil — diz o defensor do gênero.
Num ensaio feito especialmente para O GLOBO, a coletividade e a brasilidade do grupo de capoeiristas emocionaram Perfeito Fortuna, fundador do Fundição Progresso e um dos primeiros a abrir as portas para o evento, há mais de 40 anos, quando ainda existia o Circo Voador no Arpoador:
— Quando eu vi essa capoeira no Circo, me rendi. Essa arte é a educação mais espetacular do mundo. O aprendizado é em roda. E a Lapa é a base desse tipo de integração, onde brotou o coletivo e continua brotando. Nesse aqueduto de Madame Satã e em qualquer lugar do mundo hoje se encontra uma roda de capoeira com "desajustados", "desprotegidos". Na capoeira, essas pessoas se encontram e se fortalecem. Ela devia fazer parte da educação física nas escolas. Ela é completa: trabalha com dança, luta. E o coro do brasileiro combina com o brasileiro.
Para aumentar o acesso, Mestre Camisa já criou 11 variações de jogos dentro da capoeira, entre elas o Jogo do Pau (em que dois bastões são incorporados à luta); o Jogo dos Bichos (em que os participantes imitam animais enquanto jogam); e o Jogo Cruzado (em que os capoeiristas cruzam braços ou pernas enquanto duelam.
— O intuito dessa modalidade é desenvolver ambas as partes do cérebro responsáveis pela coordenação motora, já que o uso dos membros no apoio ou nas gingas é alternado. E vamos criando porque é importante a chegada dela para todas as idades e a inclusão. Algumas dessas categorias são inclusivas a pessoas com algum tipo de deficiência, a pessoas de diversas faixas-etárias— diz o baiano.
Um lutador incansável
Mestre Camisa é morador do Rio há mais de 50 anos e vive em Cachoeiras, onde tem um projeto de sustentabilidade ecológica, além do Centro de Treinamento. Com quase 70 anos, ele, num único dia, das 6h às 19h, dá três aulas, presenciais e remotas. No CT, o professor também faz da sua paixão de vida um propósito para outros entusiastas: abriga alguns jovens que sonham virar instrutores e viajar para o exterior. A capoeira mudou a vida do baiano da Chapada e segue dando significado e propósito a outros devotos da arte.
— Eu vou preparando, eles vão vindo e vão para o mundo. É para eles e também para os capoeiristas da redondeza — diz Mestre Camisa, que já viajou a mais de 80 países em sua trajetória. — Eu não levei a capoeira para o mundo, a capoeira que me levou.
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