Canhões usados na vitória da Tríplice Aliança, da qual o Brasil fazia parte ao lado de Argentina e Uruguai, na Guerra do Paraguai, não conseguiram resistir aos vândalos no Rio de Janeiro. Duas toneladas do bronze do armamento — derretido e transformado no monumento em homenagem ao General Osório, na Praça Quinze — desapareceram, quando o pesado gradil, que cercava a estátua, foi furtado há quase dez anos.
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Em uma rotina de destruição, a peça foi a mais pesada saqueada da cidade, segundo Marconi Andrade, fundador da ONG SOS Patrimônio. Desde então, a cerca nunca mais foi reposta. No quarto dia da série “Um crime contra todos”, O GLOBO mostra que o vandalismo também dilacera obras de arte e apaga a História.
— Na época do furto, cheguei a encontrar um pedaço do gradil jogado no chão, e devolvi para a prefeitura, a fim de que pudesse servir de molde. Mas a réplica acabou não sendo feita — recorda Marconi.
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Vandalismo no Rio:
- O vandalismo — que destrói o patrimônio público e privado — é tão intenso que custa mais de R$ 220 milhões no Rio. A prefeitura da Capital gastou R$ 98 milhões entre janeiro de 2022 e outubro deste ano com reparos e ações voltadas a inibirem esses atos.
- o vandalismo mata tanto inocentes quanto responsáveis pela depredação. Em geral, os autores são enquadrados nos crimes de dano e/ou furto, e a pena branda acaba não coibindo a prática. Outro desafio é identificar o criminoso.
- Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) revelam que, em 2022 e no primeiro semestre de 2023, foram registrados mais de 1.400 casos de dano ao patrimônio público no estado. O crime de vandalismo está enquadrado no artigo 163 do Código Penal, que trata de dano (“destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”), com pena de detenção de um a seis meses. Ele é qualificado se cometido com violência ou ameaça, assim como quando é contra bens públicos ou de concessionárias, com pena de até três anos.
- A maior parte das denúncias anônimas sobre vandalismo no estado, feitas nos primeiros dez meses deste ano ao Disque Denúncia, cita ações contra a infraestrutura de empresas de telefonia e TV a cabo. O material inclui tampas de metal de caixas de visitas e cabos. Em seguida no ranking, estão atos contra ônibus e a iluminação pública.
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Pichação sem trégua
Idealizado pelo escultor Rodolfo Bernardelli, o monumento foi inaugurado em 1894 e é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Apesar de a construção ter perdido placas, guirlandas e letras de bronze, a estátua do herói da batalha sobre o cavalo resiste, com a frente apontada para a Baía de Guanabara.
— Osório foi um dos grandes generais da Guerra do Paraguai. Sua bravura escreveu com letras de ouro a participação brasileira na batalha. É um herói. Ver destruir o gradil desse homem e ficar por isso mesmo é injustificável. Destruidores estão rasgando a história da cidade do Rio, construída exatamente por esses exemplares que têm um significado importante — lamenta o historiador Nireu Cavalcanti.
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Um crime contra todos
Levantamento de campo realizado pelo SOS Patrimônio concluiu que 90% dos 2.400 monumentos e chafarizes da cidade estão sem parte de seus elementos. Os chafarizes, aliás, foram pioneiros, lembra Cavalcanti:
— Durante a colônia, era proibido instalar monumento em área pública. Então, os artistas se esmeravam na produção de chafarizes, que eram as grandes obras em áreas públicas da época. Junto com igrejas, deveriam ser os primeiros a serem resgatados, por respeito à arte colonial do Rio.
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O desafio é manter íntegro esse patrimônio. Tombado pelo Iphan, o Chafariz da Glória, de 1772, foi pintado pela última vez em setembro e já está pichado. O arquiteto Carlos Fernando de Andrade lamenta que a peça seja alvo constante de vândalos, desde o período em foi superintendente do instituto:
— À medida em que a cidade foi empobrecendo, paradoxalmente uma série de elementos se valorizaram. No caso dos artefatos de bronze, facilmente derretidos, eles se tornaram um atrativo grande para parte da população mais miserável. Também há certa revolta dessa parte da população em relação ao patrimônio. O Chafariz da Glória, por exemplo, quantas vezes nós recuperamos! Quantas vezes foi depredado!
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No mesmo bairro, a Murada da Glória, inaugurada em 1905, foi revitalizada pela prefeitura ano passado e já perdeu poste e luminárias, além de ter pichações. A cena de degradação se repete na Praça Paris: o monumento a Deodoro da Fonseca teve a imagem de bronze da mãe do marechal furtada em 2020. Mesmo pesando 400 quilos, nunca foi encontrada.
Segundo a Secretaria municipal de Conservação (Seconserva), a depredação dos coretos é rotineira: os da Praça Seca e do Jardim do Méier precisam de reparos frequentes, por terem partes em madeira arrancadas, enquanto na Praça Manguetá, na Ilha do Governador, os danos são no concreto.
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Outra mureta de ferro fundido, em São Cristóvão, a cada dia perde um pedaço. Perto dali, um coreto de 1906, com peças importadas da Inglaterra, já não tem guarda-corpo, corrimão e luminária.
A Glória consta da lista da Seconserva de bairros que tiveram patrimônio vandalizado este ano, e que inclui São Cristóvão, Lapa, Copacabana, Jacarepaguá, Méier e Ilha do Governador. Os Arcos da Lapa e a Murada da Glória são os monumentos mais pichados da cidade. Ambos foram revitalizados em 2022, mas precisam de manutenção a cada 15 dias.
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Na orla de Copacabana, os óculos do poeta Carlos Drummond de Andrade precisaram ser repostos 14 vezes, desde a inauguração do monumento em 2002. A estátua foi pichada quatro vezes nesse período. E, para tentar inibir a ação de vândalos, uma câmera foi instalada no local, com monitoramento 24 horas por dia, feito a partir do Centro de Operações Rio (COR), da prefeitura.
Além de Drummond, outros 14 monumentos são vigiados por câmeras, como Dom Pedro I, na Praça Tiradentes; Zumbi dos Palmares, no Centro; e Noel Rosa, em Vila Isabel. Com monitoramento desde julho de 2022, a estátua de Marielle Franco, no Buraco do Lume, no Centro, não mais foi vandalizada, diz o COR. O que não ocorreu com a Princesa Isabel, em Copacabana, que teve a pichação flagrada por equipamentos, em maio.
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Resina substitui bronze
Em mais uma ação voltada ao combate à depredação, este ano, num projeto-piloto, a Seconserva substituiu o bronze por resina na estátua de Orlando Silva, na praça que leva o nome do cantor, no Cachambi, após dois furtos. O molde foi feito em 3D, a partir de fotos do busto original. E a iniciativa deve ser ampliada para outras áreas da cidade.
Para o restaurador Marconi Andrade, são quatro motivos principais que explicam a degradação do patrimônio:
— A impunidade e a falta de uma política de controle de ferros-velhos, assim como problemas com a população em situação de rua e o desapego pelo patrimônio. Na Cidade do México, que tem todas as dificuldades do Rio e mais alguma coisa, o patrimônio é considerado pela população como um orgulho nacional, inclusive por quem mora na periferia. Lá, os monumentos são impecáveis.
O arquiteto Carlos Fernando de Andrade defende o desenvolvimento de projetos de educação patrimonial, já que existe um “distanciamento entre a população e sua história”.
E o historiador Nireu Cavalcanti defende uma atuação ostensiva da polícia, da Guarda Municipal e dos órgãos de patrimônio.
— Os vândalos são como terroristas — compara.
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