Num cenário em que o vandalismo virou rotina, tem quem vá além do dever de não degradar: verdadeiros guardiões botam a mão na massa, protegem e recuperam espaços públicos. Das paredes pichadas transformadas em murais pelo gari Derlan de Matos Almeida à adoção de praça pelo Teatro Tablado, passando pelo vendedor Gabriel Senna, que salvou de vândalos peças da estátua do apresentador Chacrinha, bons exemplos dão esperança, em uma cidade impactada pelo desrespeito ao coletivo.
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Um crime contra todos: vandalismo se espalha por todo o Rio
No último dia da série “Um crime contra todos”, O GLOBO mostra aqueles que combatem o vandalismo. Hoje exceções, esses protetores são o futuro da cidade, avalia a filósofa e especialista em políticas públicas Viviane Mosé, que defende um entendimento entre o poder público e os cidadãos, para que a população atue, de fato, no monitoramento da cidade.
— Mesmo que o Rio tivesse o dobro de vereadores, eles não teriam como acompanhar o que acontece no dia a dia. Quem pode fazer isso é o cidadão, mas o governo tem que ajudá-lo a ajudar a cidade. Hoje, quem dá bons exemplos é quase herói — observa Viviane, que cita aplicativos de tecnologia como uma tendência não só para reportar pendências às autoridades, mas também para "catalogar e coordenar” boas ações. — A única maneira de se ter uma cidade equilibrada é quando a gente que mora, cuida.
Vandalismo no Rio:
- O vandalismo — que destrói o patrimônio público e privado — é tão intenso que custa mais de R$ 220 milhões no Rio. A prefeitura da Capital gastou R$ 98 milhões entre janeiro de 2022 e outubro deste ano com reparos e ações voltadas a inibirem esses atos.
- o vandalismo mata tanto inocentes quanto responsáveis pela depredação. Em geral, os autores são enquadrados nos crimes de dano e/ou furto, e a pena branda acaba não coibindo a prática. Outro desafio é identificar o criminoso.
- Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) revelam que, em 2022 e no primeiro semestre de 2023, foram registrados mais de 1.400 casos de dano ao patrimônio público no estado. O crime de vandalismo está enquadrado no artigo 163 do Código Penal, que trata de dano (“destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”), com pena de detenção de um a seis meses. Ele é qualificado se cometido com violência ou ameaça, assim como quando é contra bens públicos ou de concessionárias, com pena de até três anos.
- A maior parte das denúncias anônimas sobre vandalismo no estado, feitas nos primeiros dez meses deste ano ao Disque Denúncia, cita ações contra a infraestrutura de empresas de telefonia e TV a cabo. O material inclui tampas de metal de caixas de visitas e cabos. Em seguida no ranking, estão atos contra ônibus e a iluminação pública.
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O gari Derlan usa o talento no combate à degradação. Na troca da vassoura pelo pincel, contabiliza mais de 70 painéis pintados desde 2012. Em junho, após concluir murais em sete pilares de viaduto da Linha Amarela, em frente à Cidade de Deus, ele conseguiu até receber garantia de trégua.
— O pichador me disse que não deixaria mais ninguém pichar, porque tinha achado muito bonito — conta. — A essência é o desenho. Não basta pintar. Quando o lugar está decorado, inibe a degradação.
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O anoitecer na África, cachoeiras, animais e árvores, agora, embelezam pilares da Linha Amarela, que num passado recente eram rabiscados e ponto para descartar lixo e consumir crack. Na Comlurb desde 2004, o artista autodidata, que fez um curso rápido de pintura, levou dois meses para encher de cores as sujas pilastras do viaduto.
— Não faço risco. Vou direto pintando com o pincel. E faço tudo sozinho — conta Derlan, baiano, de 44 anos.
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Além da Cidade de Deus, sua arte chegou a áreas degradadas de Pavuna, Irajá, Madureira. Jardim América e Parque Garota de Ipanema. Ele também se dedica a fazer desenhos nos chamados ecopontos — serão 47 até o fim deste ano —, onde são instaladas caixas metálicas para acabar com lixões em favelas.
Microfone e bacalhau
Na Rua General Garzon, no Jardim Botânico, a estátua do apresentador Chacrinha precisou de um guardião para protegê-la. Gabriel Senna, de 35 anos, que tinha uma barraca de café da manhã nas proximidades, recorda as tentativas de depredação e furto de peças da escultura de bronze.
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Além de “marcar território”, fazendo cara feia a quem se aproximasse do velho guerreiro com más intenções, Senna teve de adotar outros métodos.
— Percebi um cara olhando a estátua, mexendo no microfone e forçando o bacalhau. No dia seguinte, o microfone estava solto. Quando fui embora, amarrei uma fita amarela no bacalhau, para verem que tinha gente de olho, e guardei o microfone para entregar a um gari — lembra ele, parabenizado pela prefeitura, ao lado do gari Gustavo Soares, durante a entrega do monumento recuperado, em dezembro passado.
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Senna aguarda a emissão de licença para voltar com seu comércio. Foi na ausência dele que, em julho último, o bacalhau sofreu nova tentativa de furto. Segundo a Secretaria municipal de Conservação, a peça foi retirada pelo órgão e “levada para local seguro”. Ainda não há data para recolocação. Em nota, a pasta informa que está sendo estudada uma forma de reforçar a estrutura existente.
Outro espaço protegido na Zona Sul é a Praça Custódio de Melo. Pichada e com brinquedos quebrados, ela foi adotada em julho de 2022 pelo vizinho Teatro Tablado. À frente do projeto, a diretora artística do Tablado, Cacá Mourthé, comemora a volta do espaço de convivência de seus alunos e da comunidade do entorno.
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— Em uma cidade como o Rio, usar a rua e dar a chance de outras pessoas usarem, poderem ir e vir com liberdade porque a praça está com vida, é uma boa maneira de se lidar com a violência — observa Cacá, que define a ação como “questão de cidadania”.
A responsável por dar cor à praça é a atriz e artista plástica Fernanda Romeu, de 25 anos. Por dois meses, ela pintou e grafitou o espaço, com homenagens à fundadora do Tablado, Maria Clara Machado, e ao teatro como um todo.
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— No tempo que trabalhei na pracinha, via que as pessoas ficavam muito felizes. Vizinhos e moradores de rua me agradeciam. Uma vez, uma menininha que saiu do colégio puxou os pais dela e falou: “essa aqui era a pracinha abandonada”. Achei lindo, porque realmente o colorido deu luz ao ambiente.
Em toda a cidade, há 412 bens adotados por empresas e pessoas físicas — como a Praça Ipiru, no Jardim Guanabara, na Ilha do Governador, mantida pelo dono de um quiosque, e canteiros cuidados por proprietários de uma loja de chocolates, no Leblon — , sendo 175 praças. A meta da Fundação Parques e Jardins é chegar a 500 até o fim deste ano com o programa Adote.Rio.
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‘Vergonha pública’
Um crime contra todos
Mostrar o rosto e ações de quem pratica atos de incivilidade foi uma forma que prefeito Eduardo Paes adotou para tentar inibir o vandalismo. Em janeiro, durante a entrega de novos articulados, ele anunciou a criação da página “Proteja o BRT” — disponível no Instagram, Facebook e X (antigo Twitter) — onde expõe quem depreda os ônibus e estações, a partir de imagens captadas por câmeras de segurança. Sua conta pessoal também é usada na divulgação dos vídeos.
— Eu não tenho medo. Tenho que botar para passar vergonha mesmo; é uma forma de aplicar uma multa. Pelo menos, o vândalo fica numa vergonha pública. Muita gente critica, mas acho que é meu papel de defesa da cidade — explica Paes, que promete “continuar expondo” quem depreda o BRT.
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