Rio
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Por — Rio de Janeiro

Com a publicação de dois decretos numa edição extra do Diário Oficial — um de tombamento e outro de declaração de utilidade pública para fins de desapropriação —a prefeitura do Rio conseguiu, na noite de segunda-feira, momentos antes de um leilão marcado para ocorrer em São Paulo, às 20h, impedir a venda de três obras de arte que teriam pertencido ao acervo da igreja de São Pedro dos Clérigos, que ficava localizada na Avenida Presidente Vargas e foi demolida em 1944, para expansão da via. Ao menos uma, a imagem do Divino Pai Eterno, entalhada em madeira é atribuída ao Mestre Valentim. Seu lance inicial era de R$ 900 mil. O valor mínimo total pedido pelas três peças era de cerca de R$ 1,5 milhão.

Entalhadas em madeira, todas as três obras são do século 18. O lance inicial do altar, que fazia parte do lote 80, estava fixado em R$ 380 mil e do par de anjos, que integrava o lote 68, era de R$ 180 mil. O Divino Pai Eterno fazia parte do lote 75. Todas as peças iriam à venda pelo martelo do leiloeiro Luiz Fernando Moreira Dutra, da Dutra Leilões.

O texto do decreto do tombamento publicado no Diário Oficial e assinado pelo prefeito Eduardo Paes informa que a medida, de caráter provisório, atinge bens"extraídos da Igreja de São Pedro dos Clérigos, localizada na Avenida Presidente Vargas e demolida em 1944".

No outro, declara os mesmos itens como de "utilidade pública para fins de desapropriação", acrescentando que a medida é devido ao fato de serem objetos "de valor histórico e artístico e a representatividade das obras de Mestre Valentim para o município do Rio de Janeiro".

Assim que tomou conhecimento de que o leilão seria realizado, o prefeito Eduardo Paes resolveu editar os dois decretos com "a finalidade de proteger a memória cultural carioca". A decisão foi tomada em conjunto com a Procuradoria Geral do Município.

Segundo a prefeitura, com o o ato, caso a obra tenha sido vendida a prefeitura tem a primazia de ficar com ela oferecendo o mesmo valor do lance vencedor. Mas, se não tiver sido vendida, a prefeitura desapropria, faz a análise e dá o valor que a perícia determinar. A intenção de Paes é doar as obras para o Museu de Arte do Rio (MAR) assim que conseguir recuperá-las.

— Estimular e preservar a Cultura sempre foram objetivos claros das minhas gestões. Tanto que temos reformado todos os nossos equipamentos culturais. A nossa intenção agora é garantir que esses bens de valor histórico para a cidade retornem para o lugar de onde nunca deveriam ter saído. Não nos parece ser esse o caso, mas também estamos cada vez mais atentos no combate ao chamado mercado ilegal das obras de arte. E tão logo tenha essas obras em mãos, o município vai doá-las para o Museu de Arte do Rio — afirmou Paes.

O leiloeiro Luiz Fernando Moreira Dutra disse que diante da decisão da prefeitura do Rio resolveu suspender as vendas, comunicar o fato aos responsáveis pelo material e aguardar os desdobramentos do caso. As obras que seriam leiloadas integram o acervo dos colecionadores paulistas Cárbia Sabatel de Bourrol e José Celestino Monteiro de Barros Burroul. José Celestino era membro da Academia Paulista de História. As peças estavam sendo oferecidos em leilão pelo espólio do casal, segundo o leiloeiro. Os proprietários das peças não foram localizados para comentar o assunto.

—A gente sempre fica estupefato com essas decisões extemporâneas. Mas, vamos sempre acatar a lei. Vamos passar para os proprietários tudo que aconteceu e eles vão ver as medidas que devem tomar, se achar que devem. Não compete ao leiloeiro questionar. Somos simplesmente um veículo de venda. Nós estranhamos um pouco ser publicado um decreto no dia da apregoação — disse o leiloeiro.

Apesar de na foto de um dos lotes, de número 80, as três peças aparecerem agrupadas, como se formassem um mesmo conjunto, elas estavam sendo oferecidas separadamente. O leiloeiro disse que apenas a imagem do Divino Pai Eterno é atribuída a Mestre Valentim. O par de anjos e o altar, embora sejam da mesma época, não seriam obra o artista. Dutra criticou a decisão da prefeitura do Rio em tombar e desapropriar as três obras.

—O decreto abrange o altar e um par de anjos que de Valentim não têm nada. A pessoa que orientou as autoridades foi muito infeliz. Prejudicou o proprietário com certeza, porque impede ou tenta impedir a venda de um objeto que não tem nada ver — acrescentou dizendo que nenhuma das peças foi obtida de forma irregular.

As três peças agrupadas: Pai eterno, par de anjos e o altar, todos em madeira. Vendas seriam em lotes separados — Foto: Edilson Dantas
As três peças agrupadas: Pai eterno, par de anjos e o altar, todos em madeira. Vendas seriam em lotes separados — Foto: Edilson Dantas

Segundo Dutra, as peças, incluindo o Divino Pai Eterno, foi adquirido pelo colecionado em leilão público, realizado décadas atrás. Ele diz que a medida da prefeitura do Rio busca corrigir um erro cometido há quase cem anos, quando a igreja foi destombada e os bens dilapidados.

— Se esse bem está preservado, isso se deve ao colecionador — defendeu.

Para a curadora de artes, Daniela Name, a decisão do prefeito do Rio foi acertada:

— Eduardo (Paes) está fazendo a coisa certa. Ele está tentando manter o patrimônio carioca no Rio de Janeiro. Isso tem que estar em museu, mesmo que não seja do Valentim. Ser do Valentim torna as coisas só mais graves, mas o fato de ser de São Pedro dos Clérigos já é muito importante.

Conheça a história da igreja

A igreja de São Pedro dos Clérigos foi construída a partir de 1733 e foi alvo de várias reformas e restaurações ao longo do templo. Chegou a ser considerada por muitos a maior joia barroca da cidade. Devido sua importância simbólica e arquitetônica chegou a ser tombada pelo serviço de patrimônio histórico. Mas, acabou sendo destombada e demolida. Seu pecado foi estar no caminho da futura Avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1944.

Antiga igreja de São Pedro dos Clérigos em foto de 1943, um ano antes da demolição — Foto: Arquivo Nacional
Antiga igreja de São Pedro dos Clérigos em foto de 1943, um ano antes da demolição — Foto: Arquivo Nacional

A ameaça de demolição do templo para passagem da via, que se tornou uma das mais importantes da cidade, veio acompanhada de protestos de fiéis, historiadores e arquitetos. A comoção deu origem a planos de remoção para outro terreno. A ideia era utilizar uma tecnologia considerada de ponta na época. Consistia em aplicar concreto na base das paredes e transportar para outro local toda a construção sobre rodas, também de concreto.

Como não havia garantias de que a empreitada seria bem-sucedida, optou-se pela solução mais simples: o destombamento e, posterior, demolição em 1944. Mobiliário, esquadrias, obras artísticas, talhas e demais peças da construção foram retiradas do local, com vistas a uma futura reconstrução em outro endereço, o que não aconteceu. Com isso as peças remanescentes acabaram dispersos em museus e em outros templos. Algumas obras, com o tempo, acabaram caindo nas mãos de particulares, compradas em feiras e leilões de arte.

Templo considerado joia barroca da cidade foi demolido para expansão da Avenida Presidente Vargas — Foto: Arquivo Nacional
Templo considerado joia barroca da cidade foi demolido para expansão da Avenida Presidente Vargas — Foto: Arquivo Nacional

Quem foi o Mestre Valentim

Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim (1745-1813), foi um escultor, entalhador e arquiteto brasileiro. Nascido no Vale do Jequitinhonha, em Minhas Gerais, viveu na antiga Vila do Príncipe até os três anos, e, mais tarde, em Portugal, até se estabelecer na capital fluminense. Muitos estudiosos da arte colonial brasileira o consideram o “Aleijadinho do Rio de Janeiro”. Fez trabalhos em pedra (mármore e granito), metal e madeira.

O artista mineiro é filho de um português contratador de diamantes e de uma negra. Levado pelo pai, em 1748, a Portugal, permaneceu lá até os 25 anos. Foi onde aprendeu o ofício de escultor e entalhador. Seu nome aparece pela primeira vez como entalhador na obra de decoração da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em 1772, como discípulo de Luís da Fonseca Rosa.

É do Mestre Valentim projeto do parque urbano do Passeio Público, assim como várias obras públicas do Rio de Janeiro nas áreas de saneamento, abastecimento e embelezamento urbano durante o século XVIII. Entre 1790 e 1813, ele também executou talha e imagens sacras para várias igrejas, como a de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, Santa Cruz dos Militares e Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco. além da São Pedro dos Clérigos.

Onde encontrar e apreciar obras do mestre

Chafariz dos Jacarés (ou Fonte dos Amores)

Entre 1779 e 1783, coube a Mestre Valentim criar o projeto do Passeio Público, um gigante jardim plano em estilo francês, com ruas formando desenhos geométricos. Entre as obras de sua autoria até hoje expostas no Passeio, que já foram alvo de vandalização e encontram-se em estado de abandono, assim como todo o jardim, está o Chafariz dos Jacarés - ou Fonte dos Amores -, obra pioneira na estilização de animais da fauna nacional.

Chafariz da Pirâmide ou Chafariz do Carmo

O Chafariz da Pirâmide, uma obra feita em mármore e pedra da época colonial (data de 1789), também é obra de Mestre Valentim — Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo
O Chafariz da Pirâmide, uma obra feita em mármore e pedra da época colonial (data de 1789), também é obra de Mestre Valentim — Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

O Chafariz da Pirâmide, uma obra feita em mármore e pedra da época colonial (data de 1789), pode passar despercebido às pessoas que passam pela Praça XV, mas também é obra de Mestre Valentim. Construído a pedido do Vice-Rei D. Luiz de Vasconcelos e Souza, ou Marquês do Lavradio, o chafariz tinha a função de abastecer de água a população e também as embarcações que ancoravam perto do cais da Praça XV, conhecida antigamente como Largo do Paço.

Memorial Mestre Valentim

Memorial do Mestre Valentim, no Jardim Botânico — Foto: Marco Antônio Cavalcanti
Memorial do Mestre Valentim, no Jardim Botânico — Foto: Marco Antônio Cavalcanti

Em 1997, o Memorial Mestre Valentim, no Jardim Botânico, foi ianugurado para abrigar peças originais de Mestre Valentim, trazidas do Passeio Público. Atualmente, a estufa onde ficava o memorial está fechada para obras, mas as quatro esculturas do artista que lá estavam, e que foram restauradas em 2015, seguem expostas ao público, no jardim: Eco, Narciso e duas aves pernaltas, originalmente projetadas para o Chafariz das Marrecas e o Chafariz do Jacaré e datadas de 1785.

Chafariz das Saracuras

Na praça General Osório, em Ipanema, está o chafariz das Saracuras  — Foto: Marcos de Paula / Agência O Globo
Na praça General Osório, em Ipanema, está o chafariz das Saracuras — Foto: Marcos de Paula / Agência O Globo

Na praça General Osório, em Ipanema, está o chafariz das Saracuras (desativado em 2017), com quatro réplicas da ave em bronze, ao pé de uma estrutura em pirâmide. A obra é do tempo do Vice-Rei Conde de Resende (1790-1801), e foi transportado de seu lugar de origem - o pátio central do Convento da Ajuda (já demolido) - para a praça em Ipanema.

Mosteiro de São Bento

Há vários obras de Mestre Valentim em igrejas do Centro, como a decoração interna da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo; talhas, esculturas e imagens sacras das igrejas São Francisco de Paula, Nossa Senhora do Carmo da Lapa, do Desterro, da Conceição e Boa Morte e Santa Cruz dos Militares. No Mosteiro de São Bento, templo católico fundado em 1590 e que traz a exuberância do barroco e do rococó, é possível apreciar dois lampadários de prata produzidos por Mestre Valentim (1745-1813).

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