Na Escola Municipal Ernesto Pinheiro Barcellos, no bairro Itaipu, em Belford Roxo, Baixada Fluminense, o cardápio oferecido aos alunos é quase sempre o mesmo: arroz e ovo. De acordo com alunas da unidade, ouvidas ontem pelo GLOBO, de vez em quando tem frango desfiado. Já na Escola Municipal Santa Cruz, no bairro Nova Aurora, o café da manhã servido ontem se resumiu a rosquinha com laranja. Mais ou menos na mesma hora em que os alunos faziam o parco desjejum, Denis de Souza Macedo, secretário de Educação da cidade, era preso pela Polícia Federal em casa, num condomínio de luxo na vizinha Nova Iguaçu. Ele é suspeito de comandar um esquema de desvio de verbas da merenda escolar. Pelos cálculos dos investigadores, o rombo ultrapassa os R$ 6 milhões.
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Além da prisão do secretário, os policiais cumpriram 21 mandados de busca e apreensão em cidades da Baixada e na capital. Mais de R$ 2,6 milhões em espécie — em euros, dólares e reais —, quatro carros, documentos e celulares foram apreendidos. Poucas horas antes da prisão, na noite de anteontem, durante evento público, o prefeito Wagner dos Santos Carneiro, o Waguinho, que está em seu segundo mandato em Belford Roxo, era só elogios a Denis Macedo, a quem classificou como “o melhor secretário de Educação de todos os tempos”.
Da Baixada para Brasília
Waguinho ganhou notoriedade nacional, em 2022, ao apoiar a candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, garantindo um importante palanque para o petista na Baixada Fluminense. Após a vitória de Lula, a deputada federal Daniela do Waguinho, mulher do prefeito, foi alçada à condição de ministra do Turismo, cargo que ocupou por apenas seis meses e meio. Ao trocar o União Brasil pelo Republicanos, foi substituída e reassumiu sua cadeira na Câmara dos Deputados, já que a pasta estava na cota do antigo partido.
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De acordo com as investigações que resultaram na operação de ontem da Polícia Federal e do Ministério Público Federal — batizada de Fames em alusão à deusa da fome na mitologia romana —, os recursos enviados pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do governo federal, eram sistematicamente desviados mediante superfaturamento dos alimentos comprados. O valor do sobrepreço seria distribuído entre o secretário e outros servidores. Para funcionar, o esquema contava com empresas fantasmas, contratos assinados por laranjas e relações próximas entre fornecedores e contratantes. Algumas das empresas investigadas tinham apenas um cliente: a Secretaria de Educação de Belford Roxo.
Documento obtido pelo RJTV, da TV Globo, mostra que uma das empresas investigadas, a RLC Barbosa, foi contratada para fornecer 201.010 unidades de maçãs, batatas e ovos. Embora tenha recebido o valor integral acordado, a empresa, segundo a Justiça, entregou apenas pequena parte do combinado, tendo descumprido 85% do contrato.
Os policiais encontraram também dinheiro vivo nos endereços de dois alvos da operação. Ainda segundo o documento obtido pelo RJTV, foram localizados R$ 336 mil e US$ 5 mil (cerca de R$ 30 mil) com Francisco Erialdo Farias Lira, que foi ex-secretário executivo da Secretaria de Educação de Belford Roxo. Já na casa do empresário João Morani Veiga, os agentes recolheram 300 mil euros (cerca de R$ 1,8 milhão). Em outro caso, Veiga foi citado pelo Ministério Público como suspeito da prática de caixa dois envolvendo uma gráfica de sua propriedade durante a campanha de Waguinho à prefeitura, em 2016.
Na operação, os investigadores estiveram ainda em um depósito de merenda da Secretaria de Educação de Belford Roxo onde foram encontrados itens armazenados de forma inadequada, além de utensílios de cozinha, como panelas e copos, próximos ao chão, e pilhas de canecas ainda embaladas e empoeiradas.
— Mexer no dinheiro público já é errado. Desviar os recursos da merenda é inaceitável, até porque para muitas crianças essa é a única refeição do dia — critica Afrânio Gonçalves de Souza, diretor do Sindicato dos Professores (Sepe) em Belford Roxo, que se queixa ainda da ausência de concurso público há 12 anos, além de férias atrasadas e falta de livros didáticos para as escolas, entre outros problemas.
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Na Escola São Francisco de Assis, no bairro São Francisco, queixas sobre a qualidade da merenda são muitas: um aluno disse que na segunda-feira comeu arroz, feijão e ovo. O mesmo estudante contou que, às vezes, o cardápio resume-se a angu com feijão. Daiane Pereira Costa de 32 anos, mãe de um estudante do 6º ano da mesma escola, também reclamou da alimentação:
— Ele diz que é só arroz, feijão, macarrão e ovo. Carne é uma raridade. Mas esse não é o único problema. A escola também não dá uniforme. O que meu filho está usando é o mesmo de dois anos atrás.
Os investigados na operação de ontem poderão responder por uso de documento falso, peculato e corrupção passiva e ativa, além de fraude a licitação e lavagem de dinheiro.
Em nota, a prefeitura informou que “não teve acesso aos autos do processo, mas confia na atuação da Justiça” e que a “administração municipal preza pela lisura e transparência” e “espera que os fatos sejam esclarecidos o mais rápido possível”.
Sobre a situação encontrada pela reportagem do GLOBO nas escolas Ernesto Pinheiro Barcellos, São Francisco de Assis e Santa Cruz, o município afirmou “desconhecer a falta de merenda denunciada pelos alunos” e que “todas as escolas dispõem de cardápio balanceado elaborado por nutricionistas”. A nota diz ainda que hoje “técnicos da Secretaria municipal de Educação irão às escolas apurar as informações dos alunos”. De acordo com a prefeitura, são servidas 120 mil refeições diárias na rede municipal de ensino, que é composta por 120 unidades, entre escolas e creches, onde estão matriculados 47 mil alunos.
Acusado nega fraude
Ao Jornal Nacional, da TV Globo, a defesa do secretário Denis Macedo afirmou que ele “sempre pautou a vida pública na legalidade”. O GLOBO não localizou as defesas de Farias e Morani Veiga.
Além da investigação sobre desvio milionário de verbas da merenda, Belford Roxo segue padecendo de falta de infraestrutura em muitas áreas. No bairro São Jorge, por exemplo, o cenário é de ruas sem calçamento e casas sem saneamento básico. O bairro São Francisco é um dos mais pobres do município: uma placa na Rua Egas Muniz diz que a prefeitura começou a fazer por lá obras de saneamento, em parceria com o governo do estado, ao custo de R$ 56 milhões, e que irão beneficiar 3.840 moradores. Intervenções na via estão parcialmente concluídas, faltando apenas asfaltar. Segundo a população, o serviço está parado há pelo menos dois meses.
— A rua estava concretada. Quebraram tudo para colocar esgoto, mas a obra está parada — se queixou Raissa Gomes, de 18 anos.
Em nota, a prefeitura diz que “as obras do bairro São Francisco são de competência do governo do estado” e “a prefeitura oferece apenas apoio logístico”.
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