O cenário paradisíaco de Angra dos Reis, na Costa Verde do Rio, vem, há cerca de seis anos, se misturando à criminalidade no município. Como forma de combate, as forças de segurança estaduais têm investido em um trabalho ostensivo, cujos resultados refletem, entre outros índices, na estatística de letalidade policial. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 18, a cidade tem a segunda polícia que mais mata no país, considerando as taxas a cada 100 mil habitantes. Em 2023, foram 71 registros, número que equivale a uma taxa de 42,2% no ranking nacional. Em primeiro lugar, está as polícias de Jequié, no interior da Bahia, com 74 mortos.
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A letalidade policial, também classificada como mortes por intervenção de agente do estado, é mensurada durante os confrontos entre agentes e criminosos. Parte deles acontece em comunidades que, no caso de Angra, são divididas pela BR-101. Dados de 2010 do IBGE revelam que, naquele ano, havia ao menos 37 favelas em Angra, organizadas de um ponto ao outro do município e isoladas umas das outras. Por esse motivo, a sensação de segurança e de violência acaba sendo observada de forma diferente entre as pouco mais de 167 mil pessoas que moram no município.
Na última quarta-feira, o GLOBO esteve em seis regiões diferentes da cidade, onde questionou alguns moradores sobre a criminalidade. A maioria deles reforçou que o cenário melhorou muito nos últimos anos, com menos notícias sobre assaltos e roubos. Os tiroteios quase não são mais ouvidos, assim como não é comum ver traficantes andando armados ou barricadas em partes mais baixas das comunidades. Os patrulhamentos da polícia e a presença de UPPs também foram elogiados.
No entanto, os relatos divergem entre aqueles que presenciaram a violência policial ou foram "esculachados" de alguma forma por agentes. Camila (nome fictício), por exemplo, nasceu no bairro Areal e, em dezembro de 2020, viu a casa onde morava com o marido e o filho recém-nascido ser invadida por quatro policiais armados com fuzis.
— Eu trabalhava muito cedo à época, então, quando eu chegava em casa, por volta de 14h, eu dormia um pouco. Naquele dia, lembro que meu cachorro não parava de latir. Eu estava cansada, pedia para ele ficar quieto e nada. Levantei para ver o que estava acontecendo e vi um policial no corredor entre o quarto e a sala, outro na janela da sala, um do lado de fora, e mais um mexendo nas fotos que estavam em um móvel. Ele pegou a foto que estava a minha família e saiu. Voltou 30 minutos depois perguntando se eu tinha visto alguma coisa, se alguém tinha entrado na minha casa. Eu fiquei com tanto medo, que não conseguia falar nada. Acho que ele precisava de mandado para estar ali, né? Achei que fossem me matar — conta. Depois do ocorrido, Camila mudou de bairro e diz estar traumatizada até hoje com a situação.
Rafaela (nome fictício) relata experiências parecidas no Bracuí, onde nasceu e mora com a família. Ela narra já ter sido agredida por policiais diversas vezes e que, devido à atuação do tráfico no local, a região convive semanalmente com incertezas quanto a operações. No mês passado, segundo ela, um caveirão chegou a ficar sete dias estacionado em um dos pontos da comunidade, os moradores deixaram de sair de casa e o comércio passou a fechar às 19h. Rafaela também comentou sobre a morte de um primo de 15 anos em confronto com a polícia em 2020.
— Ele morreu cheio de tiro na cara. Ele era da vida errada, mas não justifica como as coisas aconteceram. Ali no Bracuí a gente é esculachado todo dia pelos policiais. Eles já chegam xingando os moradores, agredindo, ameaçando, entrando nas casas, mas a gente não aguenta quieto também, não. Quando tem operação, dá para ver que já vai ter morte, é sangue nos olhos mesmo. A gente fica lá, não pensa em sair porque é onde está a nossa família, é onde nascemos, fora que vamos para onde?
André Rodrigues, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Política e Violência, da Universidade Federal Fluminense (UFF), aponta que a sensação de segurança em Angra está ligada ao perfil de combate da polícia, o que não reflete em mais pacividade ao município, que está entre as 50 cidades mais violentas, segundo o anuário.
— Angra tem alta taxa de letalidade violenta, ou seja, não é segura do ponto de vista dos indicadores de segurança. Então, essa impressão de tranquilidade tem a ver, inclusive, com esse processo de policiamento baseado em operações e brutalidade, o que gera essa sensação de combate ao crime. É muito comum a ostensividade ser usada como resposta, o senso comum acredita que as mortes de criminosos são benéficas, mas as pesquisas mostram o contrário. A falta de controle sobre a força policial instiga a criminalidade, a compra de armas, uma organização maior das facções. Trabalhos de inteligência, com menos mortes, são mais eficazes na dissolução desses grupos.
A fama da polícia de Angra dos Reis, explica o prefeito Fernando Jordão (MDB), não é um problema no município. Em entrevista, ele teceu elogios ao trabalho dos agentes, reforçando que as mortes são consequência de embates.
— A gente tinha muito roubo de carro, assaltos. Agora, os índices melhoraram, a sensação de segurança é alta. A gente parabeniza o trabalho das polícias. Quem mora aqui, com certeza está muito feliz. A gente sempre sente quando alguém morre, seja de quem for, mas acontece, principalmente durante os confrontos. O ideal seria que os conflitos não acontecessem, mas a realidade do estado não é essa.
304 mortos em seis anos
Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que, de 2018 a 2023, houve 304 mortes pela polícia em Angra. Somente naquele ano, foram registrados 51 casos, 25 a mais do que no anterior. Depois, o valor se manteve, com pequena queda em 2020 e 2021, na pandemia, quando 40 e 34 mortes foram notificadas, respectivamente. Em 2022, foram 58.
O ISP também revela o perfil dos mortos, em 2023: predominantemente masculino (98,6%) e não-branco (66,6%), variação que inclui negros e pardos. Os meses de destaque foram abril, junho e julho, com 9, 10 e 11 vítimas, respectivamente.
O aumento da letalidade coincide com o período de migração de traficantes e milicianos para Angra. Segundo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), o combate policial aos grupos criminosos, a partir de 2018, assumiu um caráter mais ostensivo, o que refletiu no número de mortos em confronto.
— Houve uma migração, nos últimos seis anos, de grupos armados da capital para aquela região, tanto de facções do tráfico de drogas como também de grupos milicianos. Como é esperado, a reação das autoridades políticas e policiais assumiu um papel mais repressivo e pouco investigativo, o que ajuda a entender porque atualmente a polícia ocupa essa posição no ranking do anuário.
Fernando Jordão também era o prefeito de Angra em 2018. Em fevereiro daquele ano, ele chegou a solicitar a Michel Temer, presidente do período, apoio da Força Nacional e do Exército para reforço na segurança da cidade. Além disso, se comprometeu a comprar 20 carros para a Polícia Militar e a aumentar o efetivo de agentes por meio do Programa Estadual de Integração na Segurança.
Em outubro, o prefeito decretou estado de calamidade pública na segurança, afirmando que iria propor os desligamentos das usinas nucleares de Angra I e II, que eram constantemente invadidas por criminosos. O turismo, principal fonte de renda do município, chegou a apresentar queda de 40% naquele ano.
Segundo Cecília Olliveira, diretora-executiva do Instituto Fogo Cruzado, a permanência da elevada letalidade policial em Angra dos Reis mostra as limitações do estado no combate ao tráfico de drogas.
— Em Angra dos Reis, vemos de maneira muito nítida o que uma política de segurança pública despreparada causa. Há anos, a cidade tem sido cenário de disputas entre facções do tráfico. A alta letalidade policial na região mostra mais uma vez que a polícia do estado não sabe como combater o tráfico na região (ou finge não saber e se omite), e o que se vê é o elevado número de mortes por intervenção policial na região. Quando falta preparo policial, a solução é o confronto.
Em nota, o Governo do Estado afirmou que "as polícias militar e civil vêm atuando de forma integrada, com ostensividade e inteligência, para aumentar a segurança da população". Além disso, destacou que houve queda de 36,5% na letalidade violenta, em relação ao mesmo período do ano anterior.
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