O espectador que sobe por uma escada em caracol até o mezanino do Teatro do Sesc, em Copacabana, na Zona Sul, depara com o imenso painel à direita da pequena sala de espetáculos. Lá estão expostas 16 fotografias de vítimas da violência policial nas favelas, como Kathlen Romeu, Thiago Menezes Flausino, Marcus Vinicius da Silva e Johnatha de Oliveira Lima. Camisetas penduradas com as imagens impressas de alguns desses jovens completam o quadro e a certeza de que o público verá no palco um drama da vida real. A peça “Das Dores — Opereta favelada”, escrita por Marcos Bassini e dirigida por Renata Tavares, funciona como um grito por justiça para as mais de 20 mães cujos relatos são costurados na elaboração do texto.
— Para escrever a dramaturgia, entrevistei mães ao visitar a Redes da Maré, organização que cuida dos direitos dos moradores. Também conversei com elas numa sessão especial na Alerj, que buscava acabar com operações policiais que estavam vitimando menores de idade — contou o autor.
O drama musical que se desenvolve no palco, em formato de opereta, conta a história de Maria das Dores. A personagem, que coloca um caco de vidro contra o próprio pescoço e ameaça se matar em rede nacional se o Estado não trouxer o responsável pelo assassinato de seu filho, não retrata nenhuma mãe específica da vida real. Na verdade, é um misto das várias mulheres que passaram pelo mesmo problema, o que acaba fazendo com que muitas mães que enfrentaram a mesma situação se identifiquem com o que estão vendo.
Para não esquecer
É o caso de Jacklline Oliveira, de 43 anos, que estava na plateia no dia da estreia, em 18 de julho. Ela é mãe de Kathlen Romeu, filha única que estava grávida de seu primeiro neto quando foi morta, aos 24 anos, após ser atingida por um tiro de fuzil. A jovem, que era designer de interiores, voltava de uma visita à avó, no Complexo do Lins, na Zona Norte, no dia 8 de junho de 2021, e esbarrou com uma operação da PM na comunidade. Na época, os policiais alegaram ter revidado a um ataque de bandidos. Jacklline acredita que a peça possa ajudar a fazer com que casos como o de sua filha, que ainda aguardam a punição dos culpados, não sejam esquecidos.
— É a arte a nosso favor. Toda a peça é um manifesto. É um grito de dor e pedido de socorro. Nos ajuda a denunciar e combater esse racismo que tanto tira vidas cruel e covardemente — afirma a mulher, que vê no interrogatório dos dois acusados do homicídio, marcado para o próximo dia 12, uma esperança de que, finalmente, a punição possa acontecer, após longos três anos de espera. — Espero que eles sentem no banco dos réus e que percam a farda. Não quero vingança, só quero justiça.
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Quem também ainda espera por justiça é Bruna Silva, de 41 anos. Embora veja o espetáculo como aliado, ela está tentando encontrar coragem para assisti-lo. Teme não resistir à emoção de ver o seu drama retratado no palco. A moradora do Complexo da Maré viu o filho Marcus Vinicius da Silva, de 14 anos, ser morto durante uma operação policial, no dia 20 de junho de 2018, quando seguia para a escola. A mãe fez da camisa do uniforme do filho perfurada e manchada de sangue sua bandeira de luta.
— Nenhum dos envolvidos foi punido. Não sei o nome de nenhum policial que participou daquela operação, mas alguém tem que se responsabilizar — exige a mãe, que ainda espera por uma indenização do estado, determinada pela justiça em dezembro de 2021, nos valores de R$ 100 mil e de R$ 35 mil, a ser paga aos pais e aos avós do adolescente, respectivamente. Houve recursos das duas partes.
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As dores de terem perdido filhos da mesma maneira trágica acabaram unindo Jacklline e Bruna, que não se conheciam. Hoje, ambas militam em movimentos de mulheres que enfrentam o mesmo drama. Para contar a história de Maria das Dores, que se assemelha à delas, além do relato das mães da vida real, a encenação conta com a participação de artistas que conhecem bem aquela realidade, oriundos do grupo de teatro Entre Lugares Maré. Das 25 pessoas envolvidas na produção — incluindo atores e equipe técnica —, 80% são pessoas pretas e moradores de comunidade, a maioria da Maré. O perfil é o mesmo das vítimas retratadas no palco, conforme apontam pesquisas como a divulgada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) em meados de 2021.
No palco, o drama da Maria das Dores, que perdeu o filho baleado pela polícia durante uma manifestação, ganha ainda mais verdade ao incorporar frases saídas das bocas das mães da vida real. “A pessoa preta já nasceu com um alvo grudado nas costas”, que costuma ser dita por Jacklline e é repetida por uma das personagens ao final da peça, é uma delas. O funk “Quilombo Favela Rua”, de Mano Teko, que virou uma espécie de hino dessas mães e que traz no clipe oficial imagens das mulheres que perderam seus filhos para a violência policial, encerra a peça.
— Acho que essa peça “Das Dores” só poderia ser feita por pessoas que moram ou trabalham na favela. Ou não teria esse tamanho, essa carga emocional, de verdade e de propriedade. A gente embarcou nesse desafio bastante doído para todos nós — destaca Renata Tavares, atriz e premiada encenadora, moradora de Bangu que há 13 anos dá aulas de teatro na Maré, local onde Mila Moura, de 28 anos, intérprete de um dos papéis centrais, viveu até um ano e meio atrás.
“Das Dores” fica até o dia 11 no Teatro do Sesc, em Copacabana, onde tem apresentações de quinta-feira a domingo, a partir das 20h30. A diretora de produção Vanessa Greff diz que o espetáculo deve seguir para outros espaços, mas antes vai passar pelo Museu da Maré, numa apresentação para a comunidade.
O que dizem as autoridades
Sobre o caso de Marcos Vinicius da Silva, a Polícia Civil informou que a investigação está em andamento na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) e é acompanhada pelo Ministério Público. “Laudos periciais foram analisados e testemunhas foram ouvidas”, diz a nota. A respeito da indenização à família, o governo do Estado informou que aguarda a definição do valor, e acrescentou que as investigações sobre o caso seguem em curso. Sobre a morte de Kathlen, a PM informou que o caso está em andamento junto ao Ministério Público da Auditoria Militar, e acrescenta que os policiais envolvidos na ação continuam afastados do serviço nas ruas e com porte de arma suspenso.
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