O garoto Marquinhos, hoje com 62 anos, era uma daquelas muitas crianças suburbanas que se preparavam por dias para a ida à praia no fim de semana. No caso do menino de Oswaldo Cruz, Zona Norte do Rio, quando o pai anunciava o programa para a família, valia até recorrer a crendices da infância, como desenhar o sol no chão de terra, para assegurar que o astro não fosse embora.
Hoje, ele mora mais perto do mar, em Copacabana — que define como “a Madureira da Zona Sul” — , considera os dois bairros uma síntese do Rio e, na vida e na arte, trabalha para juntar cariocas de todos os cantos. O sambista saiu do subúrbio, mas não o deixa nem por um instante. Agregou o bairro onde cresceu a seu nome artístico, fez fama como Marquinhos de Oswaldo Cruz, e deu vida a projetos que, nascidos bem longe da orla, são potentes expressões da cultura carioca: o Trem do Samba e a Feira das Yabás.
Feira afro no CCBB
Ano passado, a feira pegou o trem: ganhou versão trimestral no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), que recebe cerca de 30 mil pessoas a cada edição. Para seu idealizador, o novo endereço ocupado devolve para a população negra do Rio um território sagrado, do qual seus ancestrais foram expulsos — e tomaram o rumo do subúrbio.
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O evento que une samba e gastronomia acontece tradicionalmente todo segundo domingo do mês na Praça Paulo da Portela, em Oswaldo Cruz, onde reúne em torno de 12 mil pessoas. A edição suburbana deste domingo, dia 8, foi adiada, mas a de outubro está garantida. A do CCBB volta a acontecer no dia 21.
— Com as duas edições, conseguimos levar para o Centro gente que dificilmente iria para lá e, ao mesmo tempo, atrair para Oswaldo Cruz moradores de outras regiões da cidade, principalmente da Zona Sul — observa Marquinhos.
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Se, para seu criador, a feira é uma síntese dos quintais suburbanos, para Jane Pereira, uma das yabás (“mães rainhas”, em iorubá), é em lugares como esse que a cidade se encontra.
—Vem gente de todo lugar. Da Zona Sul, da Baixada e até estrangeiros de passagem pelo Rio — testemunha Jane, viúva do grande sambista Luiz Carlos da Vila, que faz sucesso servindo seu famoso jiló.
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Antes de botar em prática a proposta de “reunir a Zona Norte à Zona Sul” — como sugerem os versos do hit “O último romântico”, de Lulu Santos —, Marquinhos queria mesmo era fixar Oswaldo Cruz no mapa da cidade, destacando valores locais da cultura e da gastronomia. Ele diz que, ainda jovem, se deu conta de que bairros como Todos os Santos, Rocha, Turiaçu, Encantado e Engenheiro Leal perderam prestígio após a desativação das estações de trem que abrigavam. O temor era de que um dia isso pudesse acontecer com o lugar onde nasceu.
— Não havia uma ameaça real, mas fiquei com aquela coisa na cabeça e resolvi fazer algo— lembra.
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Foi assim que, em 1991, nasceu o Pagode do Trem, embrião do que anos mais tarde viria a ser o monumental Trem do Samba. O evento, hoje no calendário oficial da cidade, completará três décadas de existência no ano que vem.
A cada 2 de dezembro — Dia Nacional do Samba —, o festejo atrai público de quase 120 mil pessoas, que ao final do dia embarcam nos vagões de trem e viajam, embaladas por música ao vivo, da Central do Brasil a Oswaldo Cruz. Em território suburbano, a batucada continua distribuída por três palcos e 16 rodas.
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Sua inspiração veio da década de 1930, quando Paulo da Portela, fundador da azul e branca de Oswaldo Cruz, pegava o trem após o trabalho e, no balanço dos trilhos, aproveitava o momento longe da vigilância da polícia para fazer um samba entre amigos.
Marquinhos de Oswaldo Cruz agora levou a ideia ainda mais longe: criou o Trem do Samba nas Estradas. Nessa nova versão, uma carreta com palco e camarim percorre diversos bairros da cidade — já esteve em Padre Miguel, Vila Isabel e Irajá — e outros municípios, como Campos dos Goytacazes e Macaé. O repertório, no novo projeto, abre espaço para artistas locais.
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—Quando comecei com o Trem do Samba, não havia referência ao que se fazia aqui. O projeto ajudou a mudar isso. Contribuiu para devolver o subúrbio ao mapa do Rio. Ajudou a juntar a cidade. Antes ninguém queria vir para cá. Hoje, fico feliz quando vejo o bairro lotado, com gente de todo canto — afirma.
Marquinhos conta que muita gente chegou a sugerir que o Trem do Samba fizesse o caminho inverso, partindo de Oswaldo Cruz para o Centro. Mas sempre rejeitou a ideia. Primeiro, não queria abrir mão do legado do legendário Paulo da Portela e, em segundo lugar, lembra que sua intenção sempre foi a de atrair o público de outras regiões da cidade para seu bairro.
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O Trem do Samba e a Feira das Yabás — que em 2022 foi reconhecida como patrimônio cultural de natureza imaterial da cidade — hoje têm grande visibilidade, mas também é possível botar na conta de Marquinhos a existência de outras duas instituições da cultura carioca: as feijoadas na quadra da Portela, que ele ajudou a recriar, e depois foram replicadas por todas as outras escolas de samba, e o renascimento da Lapa no cenário boêmio da cidade. Embora quase não seja lembrado por isso, ele, antes das rodas do Bar Semente, que projetaram Teresa Cristina e outros sambistas, já reunia um grupo de amigos para batucar debaixo dos Arcos, em um autêntico pagode de mesa no fim dos anos 1990.
Quando ainda atendia pelo nome de batismo, Marcos Sampaio de Alcântara, e trabalhava na loja de material de construção do pai, o adolescente se encantava com a chegada de clientes ilustres, como os baluartes portelenses Monarco, Manaceia e Argemiro Patrocínio. Ele e a família moravam em Madureira, pertinho da quadra do Império Serrano. Aos 12 anos, veio a mudança para Oswaldo Cruz. O compositor, já com o bairro no sobrenome artístico, teve seu primeiro samba, “Vem cá” — em parceria com Edmar e Ivan Milanês — , gravado pelo Grupo Raça em 1996.
‘Geografia popular’
Uma de suas músicas mais conhecidas, “Geografia popular” — parceria com Arlindo Cruz e Edinho Oliveira —, gravada em 1998 por Beth Carvalho, no disco “Pérolas do Pagode”, é uma ode ao subúrbio: a letra é um inspirado passeio por bairros cortados pela linha do trem, entre Deodoro e a Central do Brasil. Num dos seus espetáculos mais recentes “Uma África chamada Rio de Janeiro”, que já foi apresentado até em Paris, ele celebra heranças deixadas de escravizados trazidos da África, que chegaram à cidade pelo Cais do Valongo. O Rio, sua história e suas origens estão em tudo o que faz.
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Outra cria de Oswaldo Cruz, o músico Mauro Diniz, que é filho do bamba Monarco e cresceu com Marquinhos, destaca a importância das iniciativas do amigo:
— Conheço gente de Ipanema que só visitou Oswaldo Cruz por causa do Trem do Samba. É um projeto que agrega em torno do bairro pessoas de diferentes partes da cidade. Isso valoriza o lugar e ajuda a tirar um pouco o foco das coisas ruins, às quais o subúrbio costuma ser associado, como a violência.
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