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GERADO EM: 08/09/2024 - 04:30

Crianças da Maré desenham desejos por paz e mudanças

No Complexo da Maré, crianças expressam desejo por paz e mudanças através de desenhos. Relatos de violência e falta de estrutura impactam suas vidas, com pedidos por fim aos tiroteios, mais áreas verdes e respeito. Operações policiais prejudicam a educação, com fechamento de escolas. ONG destaca necessidade de mais escolas e políticas de segurança que não afetem o aprendizado. Crianças também enfrentam violência e tráfico de drogas de perto. Medo, ansiedade e insegurança afetam a saúde mental dos estudantes. Secretaria de Segurança busca minimizar impactos das operações na comunidade. Sentimento de esperança por uma vida melhor é evidente nos desenhos e relatos das crianças.

"Tia, vou te contar uma história. Uma vez, eu estava no pátio da escola brincando e, do nada, apareceu um helicóptero da polícia. Ouvimos tiros. Foi uma correria de criança para todos os lados. Eu caí no chão, e a minha amiga, assustada, saiu me puxando pelos cabelos até a gente chegar à sala onde as pessoas estavam escondidas”. Esse é o relato de uma menina de 12 anos, moradora da Nova Holanda, no Complexo da Maré, em resposta a uma pergunta feita na semana passada, sobre o que seria uma comunidade ideal para morar. A cada fala, ela lembrava uma situação de perigo e a compartilhava com os colegas ao redor. O desejo de paz sobressaiu a qualquer outra aspiração.

O encontro das crianças aconteceu no fim da tarde da última quinta-feira na Biblioteca Lima Barreto, da ONG Redes da Maré. Além dessa menina, havia mais nove crianças e adolescentes, de 10 a 14 anos, todos sentados em círculo e discutindo mudanças necessárias na região. A conversa foi atravessada por memórias da violência, que aterroriza quem mora no complexo de favelas dominado por duas facções do tráfico e uma milícia. Mas também se falou sobre a falta de áreas de lazer, os problemas na educação e experiências de racismo. Para ilustrar as expectativas de cada uma delas, O GLOBO pediu para que desenhassem o que consideram a Maré dos sonhos.

Do total de trabalhos, oito pedem paz e o fim de tiroteios. Nos outros dois, há referências à poluição na comunidade, à falta de espaços verdes e à necessidade de haver mais respeito entre brancos e pretos, idosos e jovens. Também foram pedidos a criação de mais bibliotecas e livros à disposição. No mês passado, a Redes da Maré publicou um relatório sobre a educação nas 16 comunidades que compõem o conjunto de favelas. Entre as conclusões, foram apontadas a necessidade de construção de mais escolas (existem 49, mas apenas quatro oferecem ensino médio) e de uma política de segurança que não interfira no aprendizado.

A ONG também cita que, somente este ano, aconteceram 37 operações policiais na Maré, que resultaram em 34 dias sem aulas — desses, 14 foram consecutivos em agosto. O número de conflitos diverge pouco do Instituto Fogo Cruzado, que contabilizou 39 operações e 52 tiroteios em 2024.

A mesma menina que narra ter sido puxada pelos cabelos para se proteger dos tiros contou sobre a vez em que foi dada como morta após uma incursão policial:

— Foi no Dia das Crianças, há uns três anos. Um cantor ia fazer uma festa para a gente, com distribuição de brinquedos, várias coisas, tinha até um parquinho montado. Eu fui com umas amigas; meus pais estavam trabalhando. De repente, a gente só ouviu tiros. Saímos correndo. Eu fui para casa de uma amiga, que estava com a mãe e a avó. Não consegui avisar ninguém, pois não tinha celular. Como eu estava meio desaparecida, fiquei sabendo que minha foto já estava nas redes sociais, nos grupos, porque todo mundo achou que eu tinha morrido. Quando voltei para casa, encontrei a rua agitada, as pessoas querendo saber de mim. Minha irmã me deu uma bronca!

Além do desejo de paz, ela diz que outra mudança importante na Maré seria na merenda escolar. Estudante da rede municipal, ela conta que já serviram aos alunos ovo com cabelo, arroz queimado, frango cru e feijão duro.

Em nota, a prefeitura informou que a educação de qualidade é uma das prioridades dessa gestão. Sobre a merenda, afirmou que “as manipuladoras de alimentos utilizam Equipamentos de Proteção Individual” e que o cardápio garante “uma alimentação saudável e adequada com alimentos variados”. Acrescentou que alunos e professores têm à disposição psicólogos e assistentes sociais do Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Escolas (NIAP).

Através de desenhos, crianças da Maré pedem menos conflitos e uma comunidade 'mais normal' — Foto: reprodução
Através de desenhos, crianças da Maré pedem menos conflitos e uma comunidade 'mais normal' — Foto: reprodução

Professora da rede municipal na Maré há 35 anos, Jane Trajano comenta que há um esforço coletivo para tentar minimizar as mazelas:

— Nós, professores, começamos a receber mensagens sobre o clima na Maré às 5h, antes do nosso horário de trabalho. Isso já cria uma ansiedade imensa, tanto na gente, quanto nos alunos. Os cancelamentos sucessivos atrapalham a frequência, o estímulo, o planejamento pedagógico, mas eu posso afirmar que a gente faz o possível, dentro da nossa realidade, para oferecer o melhor. Precisamos acreditar que a mudança é possível.

Sentada na roda de conversa, outra menina, de 10 anos, aguarda, com a mão levantada, a vez de falar. Quase sussurrando, ela expõe experiências de racismo que já presenciou e do descaso com o meio ambiente na comunidade.

— Uma vez, eu vi uma moça ser impedida de pegar uma fruta na feira só porque ela era negra. Desconfiaram dela e, sabe, isso não tem nada a ver. O racismo é tão antigo, precisa acabar logo. Eu também acho que tem muito lixo nos lugares e pouco verde. A gente respira o ar que vem das árvores, mas tem tanto lixo, que parece que a gente respira o que vem dele. A gente precisa de espaços melhores, com árvores bonitas para gente brincar.

Através de desenhos, crianças da Maré pedem menos conflitos e uma comunidade 'mais normal' — Foto: reprodução
Através de desenhos, crianças da Maré pedem menos conflitos e uma comunidade 'mais normal' — Foto: reprodução

De acordo com a Secretaria municipal de Meio Ambiente, está em andamento a implementação do Programa Cada Favela Uma Floresta no Parque Cadu Barcellos, na Maré, que prevê reflorestamento, requalificação de espaços urbanos e uma área infantil com brinquedos lúdicos e desenvolvidos a partir de elementos da natureza.

Outra menina, de 12 anos, comenta sobre o desenho que fez: um prédio reunindo hospital e escola. As figuras acompanham frases pedindo uma Maré “normal”, sem invasões de casas e tiros.

— A gente não tem hospital aqui, só clínica (da família). Quando acontece alguma coisa mais séria, a gente precisa ir para outros bairros. Também acho que poderia ter mais escolas. A minha, por exemplo, fica longe da minha casa, ando de uma ponta à outra na Maré e nem sempre é seguro.

As unidades de saúde, assim como as escolas, também não funcionam em dias de operação. Este ano, as portas estiveram fechadas por 34 dias, segundo a Redes da Maré. Não é possível receber atendimento médico, nem pegar medicamentos nas farmácias do SUS nesses dias.

Empolgada com a conversa, outra menina, de 10 anos, compartilha uma série de violações na rotina da comunidade. A pergunta sobre sonhos é ofuscada pelos relatos, pelas falas repetidas sobre o medo de morrer. No fim, ela reforça que gostaria que as casas parassem de ser invadidas.

— Eu estava indo para o trabalho da minha mãe. A gente acordou cedo e foi andando para a Brasil, onde iríamos pegar o ônibus. De repente, um carro preto entrou na rua voando, e tinha um caveirão atrás dele. A polícia parou e desceu um “bondão”, era muito policial mesmo. Os bandidos da boca sumiram. A minha mãe começou a me puxar, e eu estava paralisada. Meu coração ficou acelerado, e eu só pensava: “Vou morrer, vou morrer, vou morrer”.

Laura Quadros, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Uerj, analisou quatro desenhos feitos pelas crianças. Para ela, é nítido que há “um pedido explícito por momentos melhores”.

— São desenhos de crianças que percebem sua rotina, sua segurança e estabilidade comprometidas pela violência. Há também um desejo de preservação de seu território, de seus lares, de sua comunidade. Alguns desenhos apontam uma realidade sombria, sem cores, sem alegria. Outros falam das ansiedades e dos temores, do sonho de uma vida melhor.

Além disso, a professora reforça que é importante proporcionar vivências amorosas, para que as crianças possam aprender a conduzir as consequências internas que a violência proporciona.

— Viver situações de insegurança, ainda mais com frequência, afeta o sono, a forma como a criança vê o mundo, o tamanho dela nessa realidade, a relação dela com a morte. Ela convive com sentimentos de medo, ansiedade, tristeza, raiva, que, sem o acolhimento necessário, podem gerar cada vez mais sofrimento. Ela precisa de referências amorosas para conseguir lidar com o adoecimento precoce provocado pela violência.

No fim do encontro, os alunos listaram as atividades que gostam de fazer, e brincar estava no topo. A menina do cabelo puxado, dada como morta, contou que era escritora. Ela mostrou um livro feito pelas crianças, parte de uma atividade da ONG. O título estampado na capa era “Se eu governasse a Maré”. As respostas se repetem, tal qual nos desenhos: menos violência, mais amor e felicidade.

Mais de 124 mil pessoas vivem no conjunto de 16 favelas

O Complexo da Maré é composto por 16 comunidades, cercadas pelas mais movimentadas vias da cidade: Avenida Brasil e linhas Amarela e Vermelha. De acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2022, 124.832 pessoas vivem na região, onde há 49 escolas públicas e sete unidades de saúde, sendo cinco clínicas da família e dois centros municipais.

Apesar da infraestrutura, a região é uma das mais conflagradas pela violência no Rio. Somente este ano, foram 16 mortos e 11 feridos em 39 confrontos entre policiais e bandidos, segundo o Instituto Fogo Cruzado.

No mês passado, o clima de insegurança piorou ainda mais com o início da demolição do condomínio Novo Horizonte, no Parque União. Uma investigação descobriu na comunidade 41 prédios com cerca de 300 unidades, que teriam sido construídos pelo tráfico de drogas e sem licença. Um dos imóveis, uma cobertura com piscina, closet, ar-condicionado split e material de alto padrão, seria para o chefe do tráfico. A favela é dominada pelo Comando Vermelho. Outras comunidades da Maré são controladas pelo Terceiro Comando Puro e por uma milícia.

Além da chegada dos operários da Secretaria municipal de Ordem Pública para derrubar os imóveis, uma onda de confrontos entre policiais e bandidos foi desencadeada, e se repete desde 13 de agosto. Em consequência, dezenas de escolas e postos de saúde acabam fechando as portas. A prefeitura informou que a Secretaria Municipal de Habitação analisa “os dados das 51 famílias que ainda ocupam o condomínio irregular,para possível inclusão delas no Auxílio Habitacional Temporário”.

Ao mesmo tempo em que perdem aulas por causa dos tiroteios, as crianças convivem de perto com o tráfico de drogas. No último dia 29, a Polícia Militar apreendeu 820 quilos de maconha e cocaína no telhado da Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva e atrás de uma parede na Escola Municipal Lino Martins da Silva, na Nova Holanda. Dias antes, uma tonelada de droga já tinha sido encontrada na Escola Municipal Maria Amélia Castro Belford.

Uma pesquisa da ONG Redes da Maré, em parceria com o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favela e Espaços Populares, da Universidade Federal Fluminense, revelou que 82% dos alunos acreditam que a violência armada impacta a vida na escola. O estudo ouviu 84 crianças e adolescentes da rede pública, que responderam a um questionário sobre insegurança nas comunidades.

Além disso, cerca de 83% responderam que a violência impacta porque os alunos sentem medo de ir para a escola. Os alunos também entendem que há interferência na saúde mental: 78% consideram que a violência impacta na perda da concentração, 62%, que gera estresse, e 61%, que provoca ansiedade.

O contexto de violência não é a única preocupação. Um relatório da ONG lista uma série de urgências na educação, que precisa de mais escolas com anos finais de ensino fundamental, mais colégios de ensino médio e creches.

Procurada, a Secretaria de Segurança lamentou os impactos das operações policiais na rotina da comunidade e, principalmente, das crianças. Informou ainda que busca minimizar as consequências com ações planejadas e pautadas por critérios técnicos. E, que um dos protocolos é o contato prévio com responsáveis pelas unidades de saúde e de educação. A nota diz ainda que as mortes por intervenção de agentes do estado caíram 33% em 213 dias, percentual mais baixo para o acumulado desde 2015.

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