Mais de três séculos depois, o povo tupinambá finalmente vai reencontrar o único exemplar do manto sagrado que está no Brasil. Para os indígenas de Olivença, na Bahia, o retorno do artefato, que estava na Dinamarca desde o século XVII, não é apenas motivo de celebração, mas uma reparação histórica e o prenúncio para a demarcação de sua terra. Ao GLOBO, a cacica Maria Valdelice disse: "O manto chegou para dizer que o nosso povo existe".
Entre esta terça e a próxima quinta-feira, os jardins do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Zona Norte do Rio, vão receber diversos rituais indígenas para celebrar o retorno do manto sagrado, que representa o resgate da memória transcendental dos tupinambás de Olivença.
"Somos os verdadeiros herdeiros do manto. Ele chega trazendo força, fé e coragem para todos os povos Indígenas e aqueles que se sentem oprimidos. É o primeiro símbolo de força e união de um povo que habita esse território desde tempos imemoriais. Por isso, foi roubado de nós e finalmente retorna para sua origem, o Brasil", escreveram os indígenas em um manifesto, que foi lido durante uma coletiva de imprensa no Instituto Cultural Unicirco, nesta segunda-feira.
Indígenas de Olivença, na Bahia, chegam ao Rio para cerimônia no Museu Nacional
Com 1,80 metros de comprimento e confeccionado com penas vermelhas de guará – única ave marinha com coloração vermelha do mundo – sobre uma base de fibra natural, o manto é uma herança dos povos originários que habitavam a costa brasileira na época do descobrimento.
Doada ao Museu Nacional pelo Nationalmuseet, na Dinamarca, a peça histórica vai ser recebida pelos indígenas com vigília, rezo, canto e palestras. Além dos quase 200 tupinambás, integrantes dos povos Pataxós-hã-hã-hães e Kariri também participarão dos rituais sagrados.
A cerimônia oficial acontecerá na próxima quinta-feira no Museu Nacional e contará com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, além de autoridades dos governos Federal, Estadual e Municipal.
— Vamos fazer uma grande homenagem. Os rituais começaram na nossa aldeia desde que soubemos da chegada do manto no Brasil. No museu, vai ter canto, rezo, vigília, fogueira e palestras. Vamos fazer orações, acender cachimbos e incensos. O manto vem com a força ancestral de marcação de território, que chora para ser demarcado. Eu gostaria de levá-lo, mas entendo preservar ele no local que está. Por isso, vamos dar um voto de confiança ao Museu Nacional — relata a cacica Valdelice, em entrevista ao GLOBO.
O objeto é um símbolo espiritual da cultura indígena e o único da época que está no Brasil. No entanto, com essa devolução, 10 exemplares tupinambás ainda estão em museus europeus, pois foram trocados ou "roubados" durante a colonização.
— Muitos artefatos históricos foram saqueados no processo de colonização, que começa no século XVI e no imperialismo que vai até o século XX. Países como Tunísia, Peru, Egito, México, Sudão e Brasil apontam perdas irreparáveis de seu patrimônio cultural ancestral para museus e centros de pesquisa europeus. Peças únicas como o Busto de Nefertiti, saqueado no Egito e exposto em Berlim, na Alemanha, evidenciam a resistência europeia no repatriamento das peças. Até a devolução do primeiro manto tupinambá, todos os onze que existem estavam em museus europeus — explica o historiador e educador patrimonial, André Moura, ao GLOBO.
Culturalmente, para os tupinambás, o manto é como um ancião multicentenário e não apenas um objeto sagrado: um material vivo, capaz de conectá-los diretamente com os ancestrais e as práticas culturais do passado.
— O manto é muito maior que a gente. Ele foi roubado pelos governos europeus. A doação do museu da Dinamarca não foi um favor — protestou o cacique Sussuarana Tupinambá, na coletiva de imprensa.
Juliana Amanayara Tupinambá afirmou que o retorno do manto fortalece a cultura e as tradições de seu povo, e simboliza a luta pela demarcação de seu território.
— O manto é nosso ancião, um guardião dos nossos saberes, costumes e tradições, e é símbolo da resistência do nosso povo. Com a sua volta, acreditamos que teremos nosso território sagrado e a demarcação da nossa terra. O retorno do manto demonstra que nosso povo vive e sobrevive com suas culturas, tradições e identidade — diz Juliana.
Atualmente, a terra indígena Tupinambá de Olivença – que vive da agricultura, pesca, colheita de piaçava e artesanato – tem a situação "delimitada" pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Trata-se da fase na qual há a conclusão dos estudos, que foram aprovados pela Funai através do Diário Oficial da União e do Estado, em que se localiza o objeto sob processo de demarcação.
Exposição do manto sagrado
Após os rituais sagrados, o povo tupinambá poderá visitar o manto em uma sala da Biblioteca Central do Museu Nacional, que é vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), "todo o evento foi organizado em diálogo permanente com o povo para garantir o direito sagrado dos indígenas em relação ao artefato".
— É um ancestral Tupinambá e tem uma ligação muito forte com seu povo. A chegada desse símbolo traz uma possibilidade de repensarmos o passado. Nós, brancos, temos uma dívida impagável. Eles têm muito a nos ensinar. O manto ficará sob a guarda do Museu Nacional, mas é do povo tupinambá — conta o reitor da UFRJ, Roberto Medronho, em entrevista ao GLOBO.
De acordo com o Museu Nacional, ainda não há informações sobre quando o manto será exposto ao público. A peça ficará em uma sala de aproximadamente 100 m² até que as obras do palácio, que pegou fogo em 2018, sejam concluídas – o que está previsto para 2026. Uma preocupação é de que o manto seja exposto na vertical: as pessoas têm que se curvar a ele.
Por conta das penas serem consideradas "muito sensíveis a flutuações de umidade e temperatura", um documento do Grupo de Trabalho (GT) de Restituição de Artefatos Indígenas mencionou a necessidade de se ter um aparelho de ar condicionado, com temperatura entre 18 e 23 graus, e um desumidificador no ambiente. Também é necessário controlar a luz, para evitar que as penas desbotem e fiquem mais frágeis.
Repatriação do artefato
O artefato raro e sagrado retornou ao Brasil no dia 11 de julho sob sigilo, por questão de segurança. A devolução ao país, segundo o MPI, contou com a "articulação entre instituições do Brasil e da Dinamarca, incluindo o Ministério das Relações Exteriores (MRE), por meio da Embaixada do Brasil, os museus dos dois países e lideranças do povo tupinambá".
O processo de repatriação do manto sagrado tupinambá, no entanto, jogou luz na discussão sobre as inúmeras relíquias etnológicas que foram levadas para o exterior e seguem fora do Brasil.
— Não é apenas um objeto arqueológico, mas um símbolo sagrado de uma cultura viva e que tem sentimentos de pertencimento, evocando religiosidade e herança coletiva. Uma das formas que a nossa sociedade encontrou por séculos para aculturar os povos indígenas foi apagando sua herança cultural, incluindo as práticas e artefatos que contam a milenar história desses povos. A reversão deste processo tem sido lenta, e a recuperação dessa memória histórica é fundamental. Artefatos como o manto nos servem como uma ponte ao passado e permite resgatar uma parte importante dessa memória que o Brasil decidiu esquecer por muito tempo — acrescenta Moura.
Segundo Eliel Benites, do Departamento de Línguas e Memórias Indígenas do MPI e coordenador do GT, a demanda inicial dos trabalhos foi realmente a devolução do manto. "A partir daí surgiu um debate mais amplo sobre como outros artefatos, que foram levados durante a colonização, poderiam ser repatriados", disse Benites.
Mostra do 'Redescobrimento - Brasil 500 Anos'
Em 2000, o manto tupinambá já havia retornado ao Brasil, sendo uma das peças centrais da mostra “Redescobrimento - Brasil 500 anos", realizada em São Paulo. Na ocasião, Amotara e Aloísio Tupinambá, membros da comunidade de Olivença, viram pela primeira vez o manto sagrado de seu povo e tiveram um encontro espiritual. Desde então, os indígenas começaram a lutar pelo retorno de seu ancião mais velho, que estava na Dinamarca há mais de 300 anos.
Amotara, uma anciã sábia e respeitada, dedicou sua vida à valorização da cultura de seu povo, honrando os ensinamentos de sua avó. Sua luta não se restringiu à preservação cultural, mas se estendeu também à demarcação das terras indígenas. Ela plantou a semente da resistência e foi uma das grandes responsáveis pela afirmação da identidade Tupinambá, garantindo que as futuras gerações conhecessem e preservassem suas raízes.
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— Em 2000, quando o manto sagrado foi exposto em uma mostra em São Paulo, Amotara e Aloísio, que contribuíram para o levante do povo Tupinambá, tiveram contato com a peça. Segundo Amotara, ela sentiu que o manto pertencia ao nosso povo. Por isso, escreveu uma carta pedindo que o artefato permanecesse em território brasileiro. Portanto, esse retorno é fruto de um processo iniciado há mais de 20 anos. Foi uma luta intensa. Amotara, que faleceu em 2018, sempre dizia que o manto voltaria para casa, e que esse retorno traria fortalecimento à cultura Tupinambá — conta Juliana.
Adriana Russi, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), disse que o retorno do manto fortalece as políticas públicas de memória e o protagonismo indígena, ressaltando que a mobilização e a pressão do povo foram cruciais para que sua cultura e o direito à memória fossem assegurados.
— Penso ser um momento emblemático para fortalecer as políticas públicas de memória e para o protagonismo indígena. Se por um lado tivemos um esforço institucional que envolveu os museus e os governos do Brasil e Dinamarca, por outro não podemos esquecer que, desde a mostra em São Paulo, havia uma demanda por parte dos tupinambás para que esse manto regressasse ao Brasil. O direito à memória faz parte desse processo — afirma Russi, ao GLOBO.
Polêmica sobre o retorno do manto
Entre os dias 1º e 4 de abril deste ano, o MPI compareceu ao território tupinambá, em Olivença, para cumprir com o processo de escuta junto às lideranças e à comunidade indígena. O objetivo foi consultá-los sobre a importância e a relação que possuem com o manto, e para viabilizar o contato deles com a peça.
No entanto, o retorno do artefato foi marcado por uma polêmica, envolvendo os indígenas e a direção do Museu Nacional. Como eles consideram a peça histórica um ancião, que está retornando ao seu povo, os tupinambás esperavam estar presentes no momento da chegada do manto ao Brasil, em 11 de julho. Mas, à época, o Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (Cito) afirmou que não foi oficialmente avisado sobre a chegada do artefato.
— Fui vetada pelo presidente do Museu Nacional para receber o manto. Pedimos o acesso para fazer um ritual quando ele chegou, mas ele não foi acolhido pelo seu povo. Depois que fiz o impossível, eu e minha mãe conseguimos fazer o ritual com o manto. Quando vimos de perto, ela me disse que as penas estavam vivas e isso foi muito gratificante pra mim. Não acreditavam que o manto vinha, mas eu provei que ele retornaria. Agora, ele precisa de estrutura para ser preservado — relembra a artista, professora e liderança indígena, Glicéria Tupinambá, em entrevista ao GLOBO.
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O Museu Nacional, por sua vez, informou que, antes de apresentar o manto à sociedade, precisaria adotar "todos os procedimentos necessários para a perfeita conservação da peça, tão importante e sagrada para os povos originários".
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