Rio

Número de religiões que usam ayahuasca se multiplica no Rio, que já tem 30 igrejas

Passados 30 anos da chegada da primeira igreja que serve a bebida, estado já tem 598 fiéis do Santo Daime e 355 da União do Vegetal
Fiéis participam, em Laranjeiras, de um culto no Círculo Holístico Arca da Montanha Azul, uma das religiões que usam o santo-daime e se instalaram no Rio nos últimos anos: a primeira seita chegou há cerca de três décadas
Foto: Pedro Kirilos
Fiéis participam, em Laranjeiras, de um culto no Círculo Holístico Arca da Montanha Azul, uma das religiões que usam o santo-daime e se instalaram no Rio nos últimos anos: a primeira seita chegou há cerca de três décadas Foto: Pedro Kirilos

RIO - Sexta-feira, 22h. O psicólogo Philippe Bandeira de Mello, fundador do Círculo Holístico Arca da Montanha Azul, inicia a palestra para um público de 80 pessoas, todas vestidas de branco, descalças e acomodadas no salão de cerca de cem metros quadrados de um casarão em Laranjeiras. Ele vai explicar o que é o chá ayahuasca (mais conhecido como santo-daime), sua importância e possíveis efeitos no organismo. O culto do Arca — uma nova linha fundada a partir da Barquinha, uma religião amazônica em que os fiéis bebem o santo-daime — propõe a comunhão entre as pessoas em busca de autoconhecimento e paz. Mas muitas não estão ali para cuidar das aflições da alma. Depois de décadas sendo vista, pelos de fora das seitas, apenas como bebida alucinógena, a ayahuasca se tornou alvo de estudos e vem sendo procurada também por pacientes em busca de tratamento para doenças como depressão, alcoolismo, dependência química, Aids e câncer. Passados 30 anos da chegada da primeira igreja de santo-daime ao Rio, as religiões que usam ayahuasca se multiplicaram — hoje, são pelo menos 30 centros espalhados pelo estado.

Bebida psicotrópica da América do Sul, utilizada em rituais de crenças ancestrais por muitas tribos indígenas da Amazônia, a ayahuasca é obtida pela fervura da casca do cipó Banisteriopsis caapi misturada com folhas de Psycotria (tipo de arbusto). No Rio, ficou conhecida a partir dos anos 80, quando chegaram por aqui os primeiros centros de religiões espíritas oriundas do Acre — o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha.


Uma adepta, grávida, toma o santo-daime
Foto: Pedro Kirilos
Uma adepta, grávida, toma o santo-daime Foto: Pedro Kirilos

Embora os dados oficiais não revelem aumento do número de adeptos no estado (segundo o Censo IBGE 2010, o Rio tem 598 fiéis do Santo Daime e 355 da União do Vegetal, não havendo registros de seguidores da Barquinha), só na Zona Sul funcionam pelo menos cinco centros, em bairros como Copacabana, Laranjeiras, Santa Teresa e São Conrado. Embora os rituais reúnam pessoas de todas as idades, a maior procura continua sendo de jovens. Como aconteceu no caso do músico e instrutor de ioga Guilherme Alves. Morador de Ipanema, ele conta que, aos 21 anos, designer formado, procurava um caminho espiritual, por se sentir deslocado. Cinco anos depois, acredita ter se encontrado através do chá:

— Eu vinha numa busca espiritual através da escola, dos livros. Eu já tinha uma profissão, trabalhava com design e fotografia, mas me sentia isolado. Foi quando ouvi falar do Arca. Foi muito mais do que eu esperava. Eu já tocava instrumento musical desde os 10 anos, mas acho que meu lado artístico estava adormecido. Foi como um despertar. Saí de lá (do Arca) com uns 15 itens do que precisava mudar na minha vida. E fiz o dever de casa. Minha vida mudou tanto que até troquei de profissão. Hoje trabalho com música e com ioga, e não me sinto isolado, desconectado do mundo — contou Guilherme, que até hoje participa dos cultos do Arca.

Adepto do Centro Eclético da Fluente Luz Universal, no Recreio dos Bandeirantes, Demétrio Oliveira conta que, na época do primeiro contato com o daime, já tinha uma filha, mas não uma profissão definida.

— A ayahuasca mudou minha vida. Tornei-me um artesão e trabalho com bambu. Além disso, há alguns anos descobri um enorme câncer no estômago. Fui operado e me retiraram um tumor de uns dez quilos. Minha doença não tem cura, mas estou bem. Faço controle com quimioterapia e com ayahuasca. Não tenho depressão ou ansiedade, e acho que a ayahuasca ajuda muito nisso. Não trata o câncer, mas me ajuda a enfrentá-lo — afirmou.

Já o protético Daniel Devusk conta que procurou o Círculo Holístico Arca da Montanha Azul, em Laranjeiras, para se tratar da dependência química e alcoólica.

— O primeiro contato que tive com o álcool foi aos 6 anos. Antes dos 16, fui internado pela primeira vez para tratamento de dependência de cocaína. Tive inúmeras idas e vindas. Fui para o Alcoólicos Anônimos, para o Dependentes Químicos, nada funcionou. Até que um tio que tinha o mesmo problema me levou para o Arca, onde eu conheci a ayahuasca. A impressão que tenho é que fui desconectado daquela vida que eu levava e religado numa realidade normal, tranquila. Não tenho mais vontade nem de beber e nem de usar drogas. A minha vida se normalizou, reconquistei minha família. Continuo frequentando o centro, mas há uns três meses sequer tomo chá. Estou completando cinco anos com o organismo limpo — contou Daniel, para quem o uso da ayahuasca para fins terapêuticos deveria ser regulamentado e mais bem divulgado.

BEBIDA FOI LIBERADA PARA FINS RELIGIOSOS EM 2004 PELO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS

Apontada como bebida alucinógena, a ayahuasca chegou a ser perseguida até 2004, quando uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas liberou seu uso para fins religiosos. Em 2010, uma nova resolução regulamentou a utilização por igrejas. Agora, o chá virou o centro das atenções em estudos de neurofarmacologia, neurofisiologia e psiquiatria.

— A maioria procura a bebida buscando tratamento para seus problemas. Ela não tem nada de alucinógena, porque ninguém fica fora do ar ou vê coisas que não existem. Ao contrário, ela desafia o indivíduo a viver em estado de consciência expandida. Defendo a regulamentação para uso terapêutico, porque está provada sua eficácia no tratamento de doenças como depressão e dependência (de drogas) — diz Philippe Bandeira de Mello.

Durante seu mestrado em neurociências, Fernanda Palhano Xavier de Fontes, do Instituto de Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, verificou alterações no cérebro de voluntários sob o efeito da ayahusca, com ressonância magnética:

— Quando os voluntários imaginavam uma cena, de olhos fechados, sob efeito da bebida, algumas regiões do cérebro engajadas nesse processo eram semelhantes às engajadas ao verem uma imagem — diz, acrescentando que a bebida tem efeito farmacológico potente, causando alterações afetivas e perceptuais, sejam visuais, auditivas, táteis ou cognitivas. — As pessoas que fazem uso ritual da bebida não a consideram alucinógena, pois acham o termo pejorativo. Preferem tratá-la como sendo enteógena, ou seja, uma substância que facilita a “manifestação interior do divino”.

Para o professor Pierre André De Souza, da Universidade Federal do Amazonas, são necessários mais estudos para se analisar como as plantas deveriam ser combinadas para serem produzidas como fitoterápicos:

— Essas plantas vêm sendo estudadas no mundo inteiro. Nos EUA, são usadas para melhorar a qualidade de vida de pacientes terminais.