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Rio

Polícia do Rio tem 25 mil laudos parados por falta de peritos

'É uma dor que não passa', diz irmã de estudante eletrocutada no Terreirão do Samba; inquérito aguarda parecer técnico laboratorial há quatro meses
Gabriela (à direita), ao lado da irmã Maria Fernanda, eletrocutada no Terreirão do Samba: 'É a dor da perda de uma irmã... Não passa nunca' Foto: Reprodução
Gabriela (à direita), ao lado da irmã Maria Fernanda, eletrocutada no Terreirão do Samba: 'É a dor da perda de uma irmã... Não passa nunca' Foto: Reprodução

RIO - "É uma dor que não passa. É a dor da perda de uma irmã... Não passa nunca. Mas saber qual foi a causa da morte pode amenizar, servir de consolo. É uma angústia muito grande ficar esperando uma resposta da polícia, dos investigadores, para saber o que realmente aconteceu. Eu não sei até agora, e ninguém diz. Queria muito que o inquérito acabasse logo''. O desabafo é de Gabriela Lima, irmã de Maria Fernanda, morta no dia 14 de abril deste ano, após ser atingida por uma descarga elétrica durante uma festa no Terreirão do Samba. Há quatro meses, a ausência de um laudo laboratorial — que deveria ter sido feito em um prazo de dez dias — emperra o esclarecimento da morte, a cargo de policiais civis da 6ª DP (Cidade Nova), e aumenta cada dia um pouco a tal "dor que não passa nunca''.

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Estudante do primeiro período de Odontologia, Maria Fernanda era a caçula de quatro irmãs. Saudável, bonita, curiosa, animada, estava no auge: 20 anos, juventude a mil. Naquela madrugada de um domingo de abril, encostou desavisada numa das grades que cercam o Terreirão e levou um choque. Tão violento que teve duas paradas cardiorrespiratórias e morreu após ser levada para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro. Desde então, a família Lima tenta colar seus cacos, e o local de eventos segue fechado, sem previsão de reabertura, até que os trabalhos da polícia e do Corpo de Bombeiros sejam concluídos. O inquérito foi enviado aos promotores do Ministério Público estadual sem o laudo da perícia , peça fundamental para determinar o que aconteceu.

Um levantamento do Sindicato dos Peritos Oficiais do Estado do Rio de Janeiro (Sindperj) revela que há hoje cerca de 25 mil laudos periciais aguardando conclusão no estado do Rio, prejudicando a solução de homicídios, latrocínios, roubos e até atropelamentos. Para contextualizar, é um universo grande, embora a taxa de homicídios venha apresentando queda. De janeiro a julho deste ano, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio, foram registradas cerca de 470 mil ocorrências de crimes, com 2.392 pessoas assassinadas e 1.075 vítimas de confrontos com a polícia.

Segundo nota da Secretaria estadual de Polícia Civil, “até o final de dezembro de 2018, o Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica (DGPTC) possuía 38.455 laudos em atraso. Esse número diminuiu em cerca de 31%, passando para 26.587 em junho de 2019, após adoção de política de produtividade”.

Faltam pessoal, equipamentos e insumos

Segundo peritos, o motivo dos atrasos na confecção dos laudos é estrutural e se "apoia'' na fragilidade de três pilares: pessoal, equipamentos e insumos básicos. A falta não poupa ninguém. E as carências sobram nas perícias médico-legais (laudos de necrópsia) e criminais (laudos de locais de crimes, por exemplo). A relação de materiais é extensa. No primeiro caso: diversos solventes para laboratório, coletores de materiais perfurocortantes, compressas de gaze, esparadrapo, agulhas, fios para sutura, sacos mortuários, lâminas e cabos para bisturi. Para se ter uma ideia, falta até tesoura.

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Na perícia criminal, os profissionais reclamam da falta de kits de teste para suspeita de uso de droga, microscópio eletrônico, balanças analíticas, estufas, scanner 3D a laser para mapeamento de locais de crime, drones. A situação dramática vai além do que está entre quatro paredes. Diversas unidades da polícia científica precisam de obras emergenciais, entre elas o ICCE, cujos laboratórios de química precisam ser readequados para receber equipamentos já comprados que estão parados e correm o risco de perder a garantia do fabricante.

Sem concurso público para a contratação de novos profissionais há mais de dez anos, o estado do Rio tem 650 peritos criminais e legistas. De acordo com o sindicato, existe um número mínimo previsto pela lei estadual 3.586/2001: 1.100, quase o dobro dos que estão em campo. Levando-se em conta, literalmente, a soma de laudos parados e a serem produzidos de acordo com os números de homicídios dolosos, mortes de civis em confronto com a polícia e latrocínios registrados de janeiro a julho deste ano — considerando-se apenas um parecer por caso —, cada perito teria que produzir cerca de 40 laudos por mês.

Pressão pelos casos de repercussão

Para o perito Rafael Rocha, presidente do sindicato, os profissionais que integram os quadros da Polícia Civil do Rio têm trabalhado como "bombeiros'', no sentido de "combater incêndios, cuidando apenas daquilo que é essencial'':

— O perito está sendo pressionado para resolver os casos de repercussão, deixando o resto na fila. Eu não sei dizer hoje o que é prioridade na Polícia Civil, mas eu posso garantir com certeza que a perícia não é. Compram-se viaturas, armas, enquanto a polícia científica está agonizando. E uma perícia enfraquecida não consegue produzir provas robustas e irrefutáveis.

O assunto foi tema de uma audiência pública na Assembleia Legislativa (Alerj) batizada de “Perícia forte: mais investigação, mais segurança”, no dia 7 de junho, organizada pela Comissão pelo Cumprimento de Leis, com a presença de peritos estaduais e de representantes da Polícia Civil e da Defensoria Pública do Estado. O deputado Carlos Minc (PSB), presidente da comissão, afirmou que a falta de peritos e os laudos em atraso comprometem o índice de resolução das investigações criminais:

— Menos de 10% dos processos criminais chegam à Justiça do Rio. Ou seja: 90% não chegam em juízo. Qual é o resultado dessa conta? Mais violência e mais impunidade. Uma polícia sem prova técnica é uma polícia sem inteligência. Que aposta na política de confronto — afirmou o deputado estadual.

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Piora no sucateamento

Na mesma audiência, a promotora Roberta Maristela Rocha dos Santos, subprocuradora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminal, do Ministério Público estadual, foi dura ao traçar um panorama da polícia técnica.

— O processo de sucateamento tem mais de 20 anos, mas agora piorou muito. E a solução é de médio e longo prazos. Isso afeta as investigações, atrasando os processos criminais. Os laudos não chegam e a busca da verdade está sendo comprometida na Justiça do estado — afirmou Roberta, ressaltando que o Rio é um dos poucos estados brasileiros sem sistema informatizado, em que o promotor tem acesso virtual aos laudos.

A nota da Polícia Civil informa ainda que, desde janeiro de 2019, foram instaurados vários processos para a aquisição de insumos e equipamentos, além de elaboração de projetos para reformas nas unidades periciais. Também destaca que, este ano, foram recebidos equipamentos adquiridos pelo Gabinete de Intervenção Federal (GIF). “Todos os processos de aquisição de insumos estão dentro do cronograma, e a aquisição desse material está sendo feita dentro de um planejamento anual previamente elaborado”, ressalta a nota. O mesmo texto destaca que “os projetos de reforma das unidades estão em fase final, e estão sendo realizados processos para manutenção predial”.

Em junho, o governador Wilson Witzel anunciou nas redes sociais a abertura de concurso público para os cargos de perito legista, perito criminal, técnico e auxiliar de necrópsia.