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Crítica: 'Cabeça (um documentário cênico)'

Musical escrito e dirigido por Felipe Vidal desidealiza a figura do artista genial, em formato oposto à estrutura canônica dos musicais: neste trabalho, pouco importam as vidas dos Titãs
Cena da peça 'Cabeça (um documentário cênico)' Foto: Ricardo Brajterman / Divulgação
Cena da peça 'Cabeça (um documentário cênico)' Foto: Ricardo Brajterman / Divulgação

O problema da maior parte dos musicais biográficos é sua linguagem excessivamente pré-codificada, marcada por uma alternância mais ou menos previsível entre cenas (faladas) retratando episódios da vida do artista e cenas (cantadas) apresentando seus grandes sucessos. Independentemente da singularidade da obra do biografado da vez, geralmente um grande vulto da música popular brasileira, há uma tendência quase inescapável de apresentar suas canções como reflexo de experiências pessoais decisivas. O pressuposto é o de que haveria uma relação causal direta entre vida e obra. Como sabem os próprios artistas, entretanto, por mais que a relação não possa ser negligenciada, tampouco deve ser sobrevalorizada. A arte mais significativa sempre transcende as intenções e o contexto imediato de seus realizadores.

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Não fosse assim, seria difícil de explicar como autores tão distantes no tempo e no espaço — como Eurípides e Shakespeare, por exemplo — permanecem absolutamente contemporâneos. Isso, claro, tem a ver com a qualidade e a clarividência do que escreveram. Mas, talvez de forma ainda mais decisiva, tem a ver com a história de sua recepção, com as vidas de todos os anônimos que, tocados por suas obras, fizeram-nas nascer de novo, mesclando-as a experiências pessoais e referências singularíssimas.

E se a recepção de uma obra de arte for tão ou mais decisiva para a sua sobrevivência do que os acontecimentos que marcaram a sua produção?

A grande subversão operada por “Cabeça: Um documentário cênico” , escrito e dirigido por Felipe Vidal , tem a ver com a desidealização da figura do artista genial e, consequentemente, com a crítica à estrutura canônica dos musicais. Nesse trabalho, pouco importam as vidas dos Titãs . O foco do interesse são “apenas” as canções de seu disco mais emblemático, “Cabeça dinossauro” , lançado em 1986, cujas músicas são tocadas ao vivo na ordem em que aparecem no Lado A e no Lado B do vinil original.

Para os fãs da banda, só essa proposta já valeria uma ida ao teatro. Mas, transcendendo a “empatia fácil” com canções que marcaram época, o que a dramaturgia propõe como comentário e desdobramento das canções é uma verdadeira viagem ao passado, uma proustiana “Em busca do tempo perdido” com roupagem pop.

As madeleines, no caso, são servidas pelos Titãs e temperadas pelos acontecimentos que marcaram o ano de 1986, como o dragão da inflação, o plano Cruzado, os fiscais de Sarney, o sucesso de Jimmy Swaggart (pai de todos os neopentecostais que hoje assumiram o poder) e inúmeras outras referências que calam fundo em quem viveu aquela época. Mas o cerne da experiência do “tempo reencontrado” não se encontra no âmbito público, e sim no mais íntimo de cada um dos performers.

Ao contarem como cada uma das músicas do disco marcou indelevelmente suas vidas, os oito atores em cena (Maurício Chiari, Felipe Vidal, Guilherme Miranda, Gui Stutz, Leonardo Corajo, Lucas Gouvêa, Luciano Moreira e Sergio Medeiros) fazem um convite irrecusável a seu público: que assumamos a coautoria das obras que amamos. Como diz o adágio popular, “de crítico e louco, todo mundo tem um pouco”.