Rio Show

Crítica: 'Contos negreiros do Brasil'

Espetáculo com direção de Fernando Philbert é fundamentalmente uma peça-aula que descontrói o mito da democracia racial no país
Rodrigo França, em cena da peça 'Contos negreiros do Brasil' Foto: Divulgação
Rodrigo França, em cena da peça 'Contos negreiros do Brasil' Foto: Divulgação

“O Brasil é racista! Muitos acreditam no mito da democracia racial e na meritocracia. Mas a sociedade brasileira é racista. A cor da pele e o risco de exposição à violência estão relacionados. Cerca de 30 mil jovens são assassinados no país por ano, e 77% são negros. Um verdadeiro genocídio da juventude negra. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil.”

CONFIRA: Toda a programação de teatro no Rio

O ator Rodrigo França entra em cena sozinho. Depois de escrever seu nome em um dos três blocos de alturas variadas que, junto com algumas cadeiras, são o único cenário da peça, ele apresenta fragmentos de sua biografia. Na sequência, adotando um tom caloroso, entre o didático e o irônico, característico dos professores que querem compartilhar conhecimentos adquiridos nos livros mas também na carne, ele escreve em letras garrafais a palavra “violência” e começa com as palavras que abrem este texto sua aula sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira.

“Contos negreiros do Brasil” , com direção de Fernando Philbert , é fundamentalmente uma peça-aula. Trata-se de desconstruir, através de números e reflexões baseadas nas obras de alguns dos principais pensadores negros do Brasil, como Milton Santos, o mito da democracia racial. Por mais que esse mito jamais tenha tido qualquer verossimilhança, há ainda muitas pessoas que se agarram a ele. A essas pessoas, que se iludem ou se desculpam pelo próprio racismo com argumentos insustentáveis do ponto de vista sociológico (como aquele que afirma só existir uma raça, a humana), o professor pergunta: “Quantos negros você encontra viajando de avião? Quantos negros você encontra nos restaurantes? Quantos negros você vê nos museus e cinemas? Sem estarem servindo!”

Força das biografias

Para que o letramento em questões raciais visado pelo trabalho seja mais efetivo, a dramaturgia se constrói com base na alternância entre fragmentos da aula do professor Rodrigo e a encenação dos contos negreiros escritos por Marcelino Freire . Esse entrecruzamento entre uma dimensão documentária e cenas ficcionais, protagonizadas por personagens negras as mais heterogêneas, permite que as informações dadas pelo professor adquiram a intensidade de vivências corporais concretas.

O ponto alto do espetáculo é o momento em que os outros quatro atores em cena, até então unicamente responsáveis pela representação das cenas ficcionais, repetem o gesto inicial de Rodrigo e escrevem, um a um, seus próprios nomes nos blocos ao fundo do palco. Numa sequência que vai progressivamente agarrando as vísceras dos espectadores, Marcelo Dias, Valéria Monã, Milton Filho e Aline Borges contam cenas de suas biografias que, embora de estrutura semelhante à dos contos de Marcelino, ultrapassam em muito o seu poder de comover e de instruir.

Evidência de que, no teatro contemporâneo, a síntese entre documentário e (auto)ficção costuma ter um alcance muito mais amplo do que as ferramentas convencionais do drama burguês.