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'Cry macho': Clint Eastwood muito além do tiro, porrada e bomba

Em novo filme, ator e diretor questiona a imagem de homem durão: Bonequinho aplaude
Clint Eastwood em "Cry Macho: O caminho da redenção" Foto: Divulgação
Clint Eastwood em "Cry Macho: O caminho da redenção" Foto: Divulgação

Num primeiro olhar, Clint Eastwood, com mais de seis décadas de carreira, ganhou em seus filmes certa fama do homem que resolve tudo com tiro, porrada e bomba. Foram principalmente os papéis de policias implacáveis e caubóis lacônicos que ajudaram a construir essa imagem do sujeito resoluto que pode dobrar a lei para fazer o que julga ser o certo. Só que o astro sempre afirmou em suas entrevistas, reunidas no ótimo livro “Clint Eastwood: Interviews”,  que aceitou esses trabalhos para que pudesse escolher seus projetos pessoais como diretor. Na publicação - que compila o que ele realmente pensa desde 1971 (até 2011) - sobressai a grande diferença de seus trabalhos autorais em relação àqueles em que ele foi contratado para interpretar essa persona criada pelos estúdios. Por isso, não surpreende que em seu novo longa, “Cry Macho – O caminho para redenção”, Clint Eastwood esteja justamente questionando a imagem de homem durão, construída ao longo de mais de 60 anos.

Na trama, Eastwood interpreta Mike Milo, um ex-astro de rodeio que aceita a tarefa dada por um ex-chefe de trazer seu jovem filho (Eduardo Minett) do México para casa. Ao tomar o caminho de volta para o Texas, a dupla enfrenta um caminho desafiador. O filme é uma espécie de mistura dos subgêneros neo western (faroeste moderno) e road movie (filmes de estrada), em que a jornada rende um aprendizado para os personagens. No caso, ao colocar um idoso experiente com um jovem desajustado, o longa serve a uma reflexão sobre o papel do macho na sociedade, levantando a questão sobre o que realmente significa ser um homem e o que se espera de um.

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O longa é baseado no livro homônimo de N. Richard Nash, que cria a expressão “cry macho” (a manha do macho) com duplo significado: a sensibilidade de um homem e sua esperteza para resolver uma situação - sem o uso da violência. Desde seu lançamento em 1975, alguns atores se interessaram em levar o livro para as telas: Burt Lancaster, Pierce Brosnan, Arnold Schwarzenegger e o próprio Eastwood em 1988, mas ele sentiu que ainda não era o momento certo.

Mais de 45 anos depois do lançamento do livro, “Cry Macho” ganha um significado ainda maior por todas as décadas que já passaram na vida de Eastwood. Além do contexto da trama, vemos  um ator sem medo de se libertar de uma efígie (de uma corporatura), entregando uma interpretação sensível por meio de uma rica linguagem cinematográfica, em que o mise-en-scène está em perfeito equilíbrio com a narrativa. Tudo com o adendo do subtema do poder civilizatório da mulher, algo com que John Ford já havia presenteado o público no lendário western “Paixão dos fortes” (1946).

A presença de referências dos cineastas John Ford e Howard Hawks faz com que Eastwood seja o último discípulo da geração de ouro do cinemão de qualidade americano. Apesar de poder sugerir um contrassenso se for analisada apenas a forte figura do ator criada na tela grande, “Cry Macho”, no entanto, está em perfeita harmonia com as crenças pessoais do diretor. A despeito de em 1986 ter sido eleito prefeito da cidade de Carmel, na Califórnia, pelo partido Republicano, Eastwood há mais de 20 anos faz parte do Partido Libertário, que promove as liberdades civis, o não intervencionismo e a limitação do escopo do governo. Entre suas posições políticas, Eastwood defende a legalização das drogas, a reforma do sistema criminal e penal americano e o fim da pena de morte nos EUA, além de também apoiar a união civil entre pessoas do mesmo sexo e outros direitos LGBT.

Percebem-se essas posturas em seus filmes como diretor. A primeira demonstração dessa sensibilidade foi em “Bird”, biografia do saxofonista Charlie Parker, que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1988 e ainda levou o Oscar de melhor som. E a grande virada veio com o já clássico western revisionista “Os imperdoáveis” (1992), em que Eastwood abria um debate sobre a violência inerente aos EUA. A partir daí, a cada novo trabalho, ele propunha um tema importante sobre a sociedade americana. Alguns exemplos: sacrifício (“As pontes de Madison”, 1995), paternidade (“Menina de ouro”, 2004), vingança (“Sobre meninos e lobos”, 2003), xenofobia (“Gran Torino”, 2008), racismo (“Invictus”, 2008), guerra ("Sniper americano", 2014) e a desumanidade da ação das autoridades (“Sully”, 2016) e do FBI (“O caso Richard Jewell”, 2019).

Eastwood vem estimulando a reflexão sobre essas e outras questões desde que começou a dirigir, com “Perversa paixão”, em 1971. Agora aos 91 anos de idade, toda vez que chega um novo filme, surja a pergunta se será o seu último. A cada novo trabalho, fica a sensação do canto do cisne. E “Cry Macho” é o que mais se aproxima dessa metáfora, por sublinhar justamente o homem sensível que existe por trás da persona criada no cinema.