Rio Show

Um passeio pela Copacabana noir de Luiz Alfredo Garcia-Roza

Em 2016, escritor levou reportagem do GLOBO aos locais preferidos do delegado Espinosa, seu principal e mais amado personagem
Luiz Alfredo Garcia-Roza, em 2016, em um restaurante de Copacabana, bairro onde se passa a maioria de seus livros Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Luiz Alfredo Garcia-Roza, em 2016, em um restaurante de Copacabana, bairro onde se passa a maioria de seus livros Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO (Matéria publicada no Rio Show do dia 3/6/2016) Numa daquelas raras tardes frias do outono carioca, o repórter deixou a redação, no Centro, rumo a um restaurante da Zona Sul. Atrasado, ele pegou um táxi sob uma garoa fina e cortante. Descendo a Rua Riachuelo rumo ao coração da Lapa, reparou que pouco a pouco a cidade perdia suas cores, provavelmente engolida pelo céu grafite. O Rio se tornara preto e branco. Imune às tentativas de conversa do motorista, ele conferia o horário a cada minuto. Ao entrar na Avenida Atlântica, a palpitação pelo compromisso lhe consumia. Então, o carro ingressou na Rua Fernando Mendes e estacionou em frente a um restaurante italiano.

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Ao abrir a porta, ele se deparou com um homem “alto e magro”, como o criador define sua criatura. Depois de uma tensão que pareceu durar horas, o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza abriu um sorriso e o cumprimentou. Ali, na Trattoria, o seu protagonista marca registrada, delegado Espinosa, costuma fazer grande parte de suas refeições. Para celebrar os 20 anos do mais longevo personagem da literatura policial brasileira, que surgiu em “O silêncio da chuva” (1996), romance de estreia do autor, que venceu os prêmios Jabuti e Nestlè, preparamos um passeio pela Copacabana noire de Espinosa, repleta de tipos curiosos demasiadamente humanos, um bairro ao mesmo tempo trivial e extravagante. Como escreveu Rubem Fonseca, “o Rio não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar”.

— O mundo do Espinosa é aquele que está incrustado no triângulo formado pelo Bairro Peixoto, a Hilário de Gouveia e a praia — conta Garcia-Roza, na Trattoria, sentado à mesa favorita de seu herói, à esquerda, perto da janela, enquanto saboreia uma taça de vinho tinto.

La Trattoria, um dos restaurantes preferidos de Garcia-Roza e Espinosa, seu personagem Foto: Leo Martins / Agência O Globo
La Trattoria, um dos restaurantes preferidos de Garcia-Roza e Espinosa, seu personagem Foto: Leo Martins / Agência O Globo

O cardápio da casa, que o romancista frequenta desde sua abertura, em 1976, vai do ravióli à calabresa ao espaguete com camarões ao funghi tartufado.

— Tanto eu quanto o Espinosa não temos um prato predileto. Viemos aqui para comer qualquer tipo de massa — diz o escritor, que se lançou como ficcionista após atuar na vida acadêmica durante 40 anos, período no qual lançou oito livros sobre filosofia e psicanálise.

O caminho foi o mesmo percorrido por sua mulher, Livia Garcia-Roza, também egressa da área da psicologia, que lançou seu primeiro romance, “Quarto de menina”, em 1995.

— Eu estava acostumado e preso àquele discurso conceitual, mas acabei me cansando do molde da academia. Antes de me aposentar como professor (foi titular da UFRJ, no campus da Praia Vermelha, local ora presente em suas tramas), eu nunca havia experimentado escrever ficção. Nem como um hobby — comenta o autor, que sempre foi um leitor voraz. — Em minha formação, a literatura policial veio logo depois das histórias de aventura. Após Conan Doyle (criador de Sherlock Holmes), eu me deparei com Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

Baratos da Ribeiro: sebo inspirou Garcia-Roza Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Baratos da Ribeiro: sebo inspirou Garcia-Roza Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Outro entusiasta da leitura é Espinosa, que possui uma estante de livros cujas prateleiras são formadas por… livros. Em sua última aparição, “Um lugar perigoso (2014), o policial é flagrado lendo “A trégua”, obra de Primo Levi que narra sua odisseia de volta para casa, em Turim, após a libertação do campo de concentração de Auschwitz, onde foi prisioneiro.

— Ele é um grande frequentador de sebos e livrarias, lê muito. Um deles, o Baratos da Ribeiro (que depois de anos instalado na Barata Ribeiro se mudou para Botafogo), me inspirou a escrever “Fantasma” (2012). Vi na vitrine um trabalho didático sobre objetos inexistentes. Aquilo me deixou intrigado. Então, pensei: “E se essa ideia fosse transposta para o Espinosa?” Daí, surgiu a história — diz.

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Assim como Garcia-Roza trocou a carreira acadêmica pela literária e a livraria cambiou de bairro, Espinosa também passou por uma mudança significativa. No início, o então inspetor trabalhava na Praça Mauá.

— O crime de “O silêncio da chuva” começa no Edifício Central, e a delegacia que atende ali é a 1ª DP. Depois concluí que o nível financeiro dele como inspetor seria muito baixo para seu padrão de vida. Por isso ele foi promovido a delegado na 12ª DP, na Hilário de Gouveia — afirma o escritor.

Roteiro Garcia-Roza: o bar Pavão Azul, em Copacabana Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Roteiro Garcia-Roza: o bar Pavão Azul, em Copacabana Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Em frente ao departamento de polícia, na esquina com a Barata Ribeiro, está o bar Pavão Azul, onde Espinosa gosta de fazer refeições rápidas, tomar um chope e degustar as pataniscas, o famoso petisco português feito de bacalhau.

— A primeira vez que estivei lá foi com o meu amigo Joaquim Ferreira dos Santos (jornalista, escritor e cronista). Ele me ligou e disse: “Luiz Alfredo, você não quer ir ao Pavão Azul comer umas “putaniscas?” Eu estranhei e respondi: “‘Putaniscas’? Logo num dia de semana?” (risos).

Ao ser informado que a grafia correta da palavra era patanisca, o escritor caiu na gargalhada.

— Esse Joaquim é um eterno rapaz. Não é que ele me pregou uma peça? — reflete.

Roteiro Garcia-Roza: Galeria Menescal, onde fica a lanchonete árabe Baalbek Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Roteiro Garcia-Roza: Galeria Menescal, onde fica a lanchonete árabe Baalbek Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Outro local marcante para os leitores do delegado é o Baalbek,“o árabe da Galeria Menescal”, uma passagem comercial que liga a Avenida Nossa Senhora de Copacabana à Rua Barata Ribeiro, onde Espinosa passa frequentemente para comprar quibes e esfirras.

Aberto pelo libanês José Chaachaa, em 1959, o estabelecimento é dirigido por seus cinco filhos.

— Na época do lançamento do primeiro livro, um cara veio aqui e perguntou se o Espinosa já havia passado para pegar suas esfirras. Eu não entendi nada. Só depois descobri do que se tratava — conta Miriam Chaachaa, uma das administradoras da lanchonete.

Romance policial de excelência

Copacabana se tornou tão ligada ao universo de Garcia-Roza que o jovem escritor Raphael Montes, ex-colunista do GLOBO, até estranhou quando o bairro estava disponível na preparação da coletânea “Rio Noir” (Casa da Palavra, 2014), compilação de contos organizada por Tony Bellotto, ele mesmo autor de um famoso detetive, Remo Bellini.

— Não acreditei quando soube que ele escreveria sobre a Lapa. Então, pelo menos num livro, eu tirei Copacabana dele — brinca Montes, que define a obra de Garcia-Roza como “policial tropical ou praiano”. — Eu frequento o Galeto Sats, o Pavão Azul e a Trattoria. Depois que li sua obra, esses lugares passaram a ter outro significado para mim.

Para Bellotto, o criador do Espinosa rompeu uma barreira que havia contra o romance policial no Brasil:

— É uma bobagem tupiniquim esse preconceito. Afinal, a qualidade literária depende do escritor, não do gênero. A excelência do Garcia-Roza enriqueceu esse cenário. A chegada dele deu força para o noir brasileiro — comenta o músico e autor.

Roteiro Garcia-Roza: Bairro Peixoto Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Roteiro Garcia-Roza: Bairro Peixoto Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Passando pelo charmoso Hotel Santa Clara, todos os caminhos de Espinosa levam à Praça Edmundo Bittencourt, no Bairro Peixoto, onde o delegado vive num “prédio de três andares, janela francesa e balcãozinho”.

— No Peixoto, ele cria um mundo dentro do universo que é Copacabana. A cidade também é protagonista de suas histórias — diz Bellotto.

Se nos livros o autor fala pouco sobre a anatomia de Espinosa, na TV o delegado ganhou vida na pele de Domingos Montagner, na série “Romance Policial: Espinosa”, que estreou ano passado no canal GNT, ainda sem previsão para uma segunda temporada.

— Como paulista, minha relação com o Rio é restrita à minha atividade profissional, mas, em Copacabana, senti uma familiaridade com São Paulo. Assim como o Espinosa, também sou um animal urbano — afirma Montagner, que menciona outra semelhança com o personagem. — Ambos somos colecionadores. Ele, de livros; eu, de discos de vinil.

Ao fim do passeio, Garcia-Roza avisa que vai passar no Baalbek:

— A Livia acabou de ligar. Ela me pediu para levar quibes e esfirras para casa.

Entrevista com Garcia-Roza

Como é seu processo de escrita e criação?

Quase sempre parto de um fato bobo e sem expressão. Certa vez vi um menino saindo debaixo de uma caixa de papelão. Esse foi o ponto de partida para “Achados e perdidos”, por exemplo. Eu não costumo fazer um plot. A trama surge enquanto escrevo, no meio do livro.

Luiz Alfredo Garcia-Roza em foto de 2016 Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Luiz Alfredo Garcia-Roza em foto de 2016 Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Espinosa é descrito como “alto e magro”, como o senhor. O que há em comum entre vocês?

Nada (risos). Acho que só isso e a paixão por livros.

O que te fascina em histórias policiais?

O mistério. Quem gosta de whodunit é cão farejador. O crime, qualquer um pode desvendar. O enigma, não. O que importa é o que está por trás do crime, suas motivações, o silêncio.

Raskólnikov está pensando nisso até hoje...

Exatamente. Ele ainda deve ter um machado guardado pro próximo (risos). Todo o “Crime e castigo” não é um desvendamento de um assassinato. O Dostoiévski mostra o crime logo no início, assim como fiz em “O silêncio da chuva”. E ninguém deixou de ler por causa disso.

Você mataria o Espinosa, como o Conan Doyle fez com o Sherlock Holmes?

Não tenho plano de matá-lo, mas não está fora de cogitação. No dia em que ele começar a ser repetitivo, terei que tomar uma decisão.

Afinal, o crime compensa?

Pelo menos para mim, sim.