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Participe da nova seção do GLOBO ‘Conte sua história de amor’! É só mandar seu relato, com no mínimo 4 mil caracteres e no máximo 5 mil, para o e-mail [email protected]. É preciso se identificar e mandar um telefone para contato. No entanto, caso prefira, a publicação pode ser anônima. As histórias selecionadas pela nossa equipe serão publicadas a cada 15 dias na versão digital (às quintas-feiras) e impressa (aos sábados) do jornal. Não é preciso ser escritor, apenas ter um conteúdo verdadeiro, vivido por você e com emoção genuína. Qualquer tipo de amor vale a pena!

Confira a história desta semana, enviada por Marco Antonio Murad Neffa:

Ídolo que valoriza o fã — Foto: Rata/Editoria de Arte
Ídolo que valoriza o fã — Foto: Rata/Editoria de Arte

"O ano era 1976 e vivíamos os últimos dias de dezembro. Eu era um adolescente de 16 anos com vários sonhos, entre estes o de me tornar cartunista quando crescesse. Tudo começou, então, com o telefonema de uma tia. O motivo da ligação era me convidar para a festa de réveillon que aconteceria no restaurante do Ferrinho, chef de cozinha muito conhecido na cidade, especialista e divulgador da culinária capixaba. Na lista de convidados, lá estava ele, meu ídolo maior, meu herói gráfico, meu artista favorito entre todos: Ziraldo Alves Pinto. Conhecedora da minha admiração (ou melhor, idolatria) por Ziraldo, minha tia fez questão de ressaltar que ele já havia confirmado presença. O êxtase tomou conta de mim, e era tamanho, que senti meu tórax inflar.

Àquela época, eu já conhecia a obra completa do mestre, e colecionava tudo que ele produzia. Das revistas em quadrinhos do Pererê, da Supermãe, às charges publicadas na página 10 do Jornal do Brasil, passando pelos álbuns, e, claro, os cartuns do Pasquim, nada escapava à minha avidez. Colecionava tudo que existia e guardava com carinho no meu quarto, de maneira que todo o acervo estivesse sempre ao alcance das mãos. Naquele ano, meu livro de cabeceira era a antologia de charges A Última do Brasileiro, que acabara de ser lançada. É, até hoje, o livro que mais li e reli, entre todos os que tenho. Como esquecer da fatia de pão caída no chão, “com a manteiga para baixo, naturalmente” ou dos frustrados atletas olímpicos retornando para casa, ostentando como medalha, apenas a da santa protetora.

Pois bem, no dia e horário marcados, lá estava eu, na frente de casa, esperando minha tia e primos, para juntos irmos passar a festa de réveillon no Ferrinho. O restaurante dele ficava em um local remoto da cidade. Nessa época, quase não havia vizinhança e iluminação pública. Por isso, a lua e as estrelas brilhavam com mais intensidade. Tudo contribuía para construir uma atmosfera onírica, na qual eu parecia imerso. Na entrada, Ziraldo, a esposa Vilma e os três filhos acabavam de chegar. Envergonhado, só admirei à distância, sem me aproximar. Alguns minutos depois, tomei coragem e me dirigi à mesa da família, com alguns quilos de livros para ele autografar: A Última do Brasileiro, Jeremias, o Bom, Flicts, Antologia Pererê, Almanaque do Pasquim. O Menino Maluquinho ainda não havia sido criado. Conversamos por alguns instantes e voltei ao meu lugar.

A festa prosseguia e, quase ao final, Ferrinho pendurou um enorme mural em branco, para que todos os presentes assinassem o nome, como recordação daquela noite memorável. O primeiro foi Ziraldo, que, em vez de assinar, preferiu fazer uma caricatura instantânea do anfitrião, depois de esquadrinhá-lo por alguns segundos. Perfeito. Instante contínuo, Ziraldo olha ao redor e resolve convidar o “menino Marco Antonio” para também fazer um desenho, ao lado do dele. Era comigo, e eu comecei a tremer de emoção. Como desenhar com as mãos trêmulas?, pensei. Ele insiste e eu resolvo aceitar o convite. Com um traço hesitante, esbocei uma garatuja e voltei correndo para minha mesa, sob aplausos.

A comemoração chegara ao final. Ziraldo se aproximou de mim e me pediu para ir visitá-lo no recém-inaugurado Hotel Porto do Sol, em Guarapari, onde ele se encontrava hospedado. Suponho que o arquiteto Paulo Casé, autor do projeto, serviu de conexão entre Ziraldo e seus amigos capixabas. Convite feito, dois dias depois peguei o ônibus até Guarapari e, chegando ao hotel, pedi ao recepcionista que chamasse Ziraldo pelo interfone. Instantes depois, ele apareceu esfuziante, com uma coleção de livros da Editora Codecri e alguns pôsteres dos Zeróis, para me presentear. Não acreditava naquilo. Meu ídolo, ali, na minha frente, dedicando seu precioso tempo integralmente a mim. Conversamos por mais alguns instantes sobre desenho de humor, materiais e mostrei-lhe alguns cartuns. Ziraldo, então, me fez mais um convite. Sugeriu que eu fosse ao Rio, ver de perto o fechamento de uma edição do Pasquim, e me deu o telefone da casa dele.

Algumas semanas depois, lá estava eu, em Copacabana, hospedado na casa de uma tia carioca. Telefonei para o número que ele havia me dado e combinamos os detalhes da minha ida à sede do Pasquim, que aconteceu em uma quarta-feira de fevereiro de 1977. Escalei a famosa Ladeira Saint Roman até me deparar com o casarão, sem placa que o identificasse, onde funcionava a redação do jornal. O sol já havia se posto, e nos momentos que se seguiram, começaria à vera o fechamento do número 397, que conservo comigo até hoje. A capa estampava uma foto do cacique Mário Juruna, o entrevistado da semana. Naquela noite, estavam todos ali: Jaguar, Guidacci, Ivan Lessa, Sérgio Augusto, o letrista Rafael... Ziraldo, o mais agitado, movimentava-se de um ambiente a outro, sempre entoando em altos decibéis um mesmo tango argentino, no caso, Cambalache, de Carlos Gardel. Eu estava atento a todos os detalhes, como dá para perceber.

As horas voaram e já havia passado das 3 da madrugada. Estava rolando uma ceia na redação, para a qual fui convidado, mas era hora de ir embora. Fui agradecer a noite inesquecível e me despedir de Ziraldo. Ele, preocupado, ralhou comigo e recomendou que eu não voltasse a pé àquele horário. Em seguida, pediu para o motorista do jornal me levar em casa de carro. O acontecimento chegara ao fim.

Quase cinco décadas se passaram desde aquele dia. A minha carreira de cartunista nunca vingou. Cheguei a expor em Vitória, Jaguar um dia me disse: "bem-vindo ao clube dos que pensam que podem viver de humor". Mas são muito poucos, e tinha gente melhor que eu. Minha família tinha uma empresa e a vida seguiu outros rumos, inclusive inesperados, porque hoje sou policial civil. Mas continuo gostando tanto de cartum quanto sempre gostei.

Durante aquele breve tempo que convivemos, e até hoje, nunca deixei de me surpreender com o carinho e o afeto com que Ziraldo me tratou. Eu era apenas um adolescente inexpressivo, sobre quem ele não tinha nenhuma referência. Não conhecia meus pais ou qualquer pessoa da minha família. Mesmo assim, sempre me tratou como um velho amigo, como se não houvesse nenhuma diferença de idade entre nós. Torço para que outros adolescentes tenham a sorte que eu tive: amar o ídolo e ser correspondido."

*por Marco Antonio Murad Neffa

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