Saúde Coronavírus

Receio não justificável de efeitos adversos da vacina atrapalha campanha de imunização da Covid-19

Apesar de o benefício do imunizante ser superior ao potencial risco, profissionais de saúde têm visto algumas pessoas tentarem escolher a vacina que vão receber, o que não está previsto
Vacinação no Palácio Duque de Caxias, ao lado da Central do Brasil, Rio de Janeiro Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Vacinação no Palácio Duque de Caxias, ao lado da Central do Brasil, Rio de Janeiro Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

SÃO PAULO - A investigação que a vacina contra Covid-19 da Universidade de Oxford vem sofrendo por agências regulatórias europeias está semeando no público um receio sem razão de ser, afirmam especialistas. Apesar de o benefício do imunizante ser superior ao potencial risco, profissionais de saúde têm visto algumas pessoas tentarem escolher a vacina que vão receber, o que não está previsto.

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Nesta semana circulou entre médicos um relato do cardiologista Luiz Bortolotto, professor da Faculdade de Medicina da USP, que conta ter recebido essa demanda.


— Eu tive solicitações nesta semana de pacientes questionando sobre qual seria a melhor vacina e perguntando se eu poderia escrever uma carta para tomarem CoronaVac, porque eles tinham medo das notícias dos casos de trombose na Europa em pessoas que tinham tomado a vacina de Oxford — conta o médico, presidente da Sociedade Brasileira de Hipertensão. — Eu expliquei que não existe base para indicação de uso preferencial nem contraindicação de uma vacina ou outra, mesmo para quem é portador de doença cardiovascular.

Os relatos de profissionais de saúde se deparando com esse tipo de preferência, de fato, cresceram com as notícias da Europa, onde os casos ocorreram em aproximadamente 1 em cada 250 mil vacinados. Um episódio conturbado foi a decisão da Dinamarca de suspender o uso do imunizante para investigar a questão.

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Rosana Richtmann, infectologista do Instituto Emílio Ribas e integrante do Comitê de Imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia, diz que uma decisão como essa não faria sentido no Brasil.

— A Dinamarca tem o armário cheio de outras vacinas e pode suspender o uso de uma delas com a justificativa de entender melhor o que está acontecendo. Esse não é o nosso caso, com um estoque de vacina tão baixo — diz a médica. — O risco de complicação tromboencefálica, trombose e embolia pulmonar é muito maior com a Covid-19 do que com o eventual risco apresentado pela vacina, mesmo em casos leves da doença.

Números em contraste

As investigações na Europa ainda estão em curso, mas mesmo que todos os casos relatados sejam imputados à vacina de Oxford/AstraZeneca, o que é improvável, o risco de não se vacinar contra Covid-19 continua maior.

Para ilustrar a relação de risco, o Centro Winton de Evidências e Comunicação de Riscos, da Universidade de Cambridge, preparou um relatório que compara, de um lado, a probabilidade eventual de um vacinado sofrer evento adverso grave e, de outro lado, de ter que parar dentro de uma UTI por ter contraído Covid-19.

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Num cenário de epidemia similar ao do Brasil atual, o risco de contrair Covid-19 grave foi mais que o dobro daquele carreado pela vacina de Oxford. Isso mesmo no grupo jovem, mais propenso a ter efeitos adversos da vacina. Para a faixa mais idosa de pacientes, o risco de parar na UTI com coronavírus foi 200 vezes maior (veja gráfico acima ).

Esta não é a primeira vez que a investigação de uma intercorrência de farmacovigilância vira motivo de receio no Brasil. No ano passado, a morte de um voluntário de pesquisa clínica da CoronaVac foi usado pelo presidente Bolsonaro para espalhar medo da vacina. (Depois constatou-se que era um caso de suicídio.)

Nesta semana, a vacina da Johnson & Johnson, aprovada para uso emergencial pela Anvisa mas que ainda não está em uso no Brasil, começou a apurar casos de trombose.

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Num evento da Academia Brasileira de Ciências, o diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), Jorge Kalil, disse que o tipo de trombo observado agora não foi detectado nos ensaios clínicos das vacinas da AstraZeneca ou da Johnson, quando milhares de pessoas foram testadas. Só apareceu quando a vacinação chegou à escala de milhões, um indicador de sua raridade.

Membro do conselho dos EUA que supervisiona testes de vacinas, Kalil acrescenta que ainda não há explicação do mecanismo dos trombos e a ocorrência precisa ser investigada na população vacinada. Ele diz que, enquanto não se esclarece a questão, pode se considerar suspender o uso apenas em mulheres com menos de 30 anos, porque a taxa de Covid-19 grave nelas é baixa. Em outros grupos, o risco é muito maior.

Richtman lembra, porém, que mesmo nas mulheres mais jovens, a taxa estimada de complicações pela vacina é equiparável ao risco da pílula anticoncepcional, medicamento que não requer prescrição e é associado a casos de trombo em uma a cada 2.000 usuárias.

(Com Ana Lucia Azevedo e Constança Tatsch)