Saúde

Dois terços das mutações que causam câncer são aleatórias, diz estudo

Além da genética e do ambiente, o acaso tem papel importante no surgimento da doença
Duple hélice do DNA reproduzida via computador Foto: AFP
Duple hélice do DNA reproduzida via computador Foto: AFP

RIO — As mutações que causam câncer em geral têm origem em hereditariedade e meio ambiente, mas, agora, um novo trabalho publicado na revista “Science” enfatiza a importância de uma terceira fonte para essas alterações: o acaso. De acordo com o estudo, dois terços das mutações que levam a variados tipos de câncer são atribuídos a erros aleatórios que ocorrem em células saudáveis. O matemático Cristian Tomasetti e o geneticista oncológico Bert Vogelstein, ambos da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, chegaram a essa conclusão com base na análise do sequenciamento do genoma humano e de dados epidemiológicos de 32 tipos de câncer.

O trabalho deles mostrou, por exemplo, que apenas 5% das mutações identificadas nos pacientes com câncer de pâncreas foram herdadas geneticamente; 18% ocorreram devido a fatores ambientais, como o tabagismo; e as 77% restantes foram resultado de erros aleatórios no DNA, aparentemente inexplicáveis. Considerando-se apenas o câncer de próstata, os médicos chegaram a estimar que 95% das mutações que resultaram na doença foram adquiridas ao acaso.

No total, levando em conta os 32 tipos de câncer analisados, os pesquisadores estimaram que 66% das mutações se deviam à “má sorte”. O ambiente teria influenciado 29% dos erros no DNA; e a hereditariedade, somente 5%.

— Claro que estas são estimativas — disse Cristian Tomasetti, em uma entrevista coletiva realizada ontem. — Mas é o melhor que podemos fazer hoje. E significam uma mudança de paradigma na forma como pensamos o câncer.

A equipe de pesquisadores também concluiu que existe uma forte correlação entre a incidência de câncer e um alto número de divisões de células-tronco normais no corpo. Essa associação já havia sido mostrada por eles em 2015, partindo de dados apenas dos EUA. Mas, neste novo estudo, foram analisadas informações de 423 bancos de dados sobre câncer presentes em 69 países de cinco continentes. Isso comprova uma correlação universal, que ocorre independentemente das características do lugar e da população.

Essas conclusões evidenciam o que muitos pacientes e médicos já haviam percebido: em vários casos não há como prevenir o câncer. E, exatamente por isso, esses achados reforçam a necessidade de se detectar a doença no início e intervir já nesse período — abordagem chamada de “prevenção secundária”, quando a doença já está instalada, mas é possível eliminá-la logo no início.

Os pesquisadores vão além e ressaltam que, para os cânceres que são, exclusivamente, resultado de mutações aleatórias, a prevenção secundária pode ser a única opção. Já para os cânceres em que apenas um pequeno percentual de mutações é devido a erros aleatórios de replicação do DNA, a prevenção primária — aquela que busca minimizar fatores nocivos no estilo de vida — continuará a ser a forma mais eficaz de reduzir o número de casos da doença e de mortes decorrentes dela.

O oncologista Daniel Tabak, membro da Academia Nacional de Medicina, ressalta que não se pode dizer que dois terços dos casos de câncer ocorrem ao acaso, mas sim dois terços das mutações que levam a esses cânceres.

— Um mesmo tipo de câncer pode surgir como consequência de várias mutações diferentes. Então falar de número de mutações e de número de casos de câncer são coisas distintas — explica ele. — Mas é claro que, se a maior parte das mutações acontece aleatoriamente, isso vai influenciar também boa parte das ocorrências de câncer.

Segundo ele, o grande mérito do estudo foi conseguir criar um modelo matemático para comprovar o que já se percebia na clínica. As conclusões da pesquisa também ajudam a tirar a culpa que muitos pacientes sentem, ao atribuírem a si a responsabilidade pela doença.

— Muitos pacientes não têm histórico de câncer na família, não são obesos, não fumam e não têm outros hábitos que são relacionados ao tipo de câncer que desenvolveram, mas permanecem se questionando se foram negligentes de alguma forma com a própria saúde. Agora podemos dizer, com base matemática, que não. Esses tumores são resultado de acidentes genéticos, que não poderiam ser evitados.

EXAMES DE ROTINA SÃO ESSENCIAIS

Para Andreia Melo, oncologista clínica do Grupo Oncologia D'Or, o estudo reforça a ideia de que os exames de rotina para detecção precoce da doença são essenciais.

— Já que a prevenção primária não funciona sempre, o quanto antes o câncer for descoberto, melhor — sublinha a médica.

No entanto, os autores do estudo enfatizaram que os resultados obtidos na pesquisa são consistentes com evidências epidemiológicas sobre a fração de cânceres que são potencialmente evitáveis, por meio de melhorias no ambiente e nos hábitos de vida.

Embora se saiba que grande parte dos casos da doença acontece ao acaso, é expressivo o número de ocorrências associadas à obesidade, ao tabaco, ao sedentarismo e à exposição excessiva ao sol. No Reino Unido, a Cancer Research estima que 42% dos casos de câncer no mundo sejam evitáveis. Já os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos calculam que 21% das mortes anuais por câncer poderiam ser prevenidas.