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Margareth Dalcolmo lança livro e recorda início da pandemia: 'Havia uma cumplicidade do medo entre médicos e pacientes'

Pneumologista mergulhou no combate do coronavírus desde os primeiros momentos, história que ela conta na coletânea de artigos escritos pro GLOBO 'Um tempo para não esquecer' (ed. Bazar do Tempo)
A infectologista Margareth Dalcolmo lança livro Foto: Ana Branco / Agência O Globo
A infectologista Margareth Dalcolmo lança livro Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO — Passados quase dois anos de pandemia, os pacientes voltaram à sala de espera do consultório da pneumologista Margareth Dalcolmo. Todos vacinados. E, diferentemente do que se via há poucos meses, a Covid-19 lá, como em hospitais e clínicas, não é mais onipresente, embora ainda esteja longe de ser vencida. Dalcolmo mergulhou no combate do coronavírus desde os primeiros momentos, uma história em curso, que ela conta no livro “Um tempo para não esquecer” (ed. Bazar do Tempo), uma compilação de artigos publicados no GLOBO e que compõem uma cronologia da doença que mudou o mundo.

No princípio, lembra Dalcolmo, eram o caos e o medo. Logo depois do carnaval de 2020, pacientes com uma pneumonia atípica e grave começaram a chegar em número cada vez maior. Começava com uma viremia (quantidade de vírus) pesada, que depois diminuía e a doença evoluía para uma fase inflamatória, com síndrome respiratória aguda grave (SRAG), trombose e morte.

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Quando ainda não se sabia como tratar a Covid-19, pacientes e médicos sofriam de um luto pressentido. Sabiam que a morte estava logo ali. Muitos doentes se despediam ao serem internados.

— Nós, médicos, tínhamos muito medo. Medo de adoecer, medo de não salvar os pacientes. Medo de encará-los e ver o pavor em seus olhos, de uma doença que ninguém conhecia e podia matar. Havia uma cumplicidade do medo entre médicos e pacientes — se recorda Dalcolmo, que teve a doença em abril de 2020, e sofreu do mesmo temor e insegurança que acometia seus pacientes.

Ela conta que muitas pessoas com coronavírus morreram de trombose no Brasil e no mundo até que se descobriu que a Covid-19 é uma doença do endotélio (camada que reveste os vasos sanguíneos) e não apenas dos pulmões.

— Vimos também que havia uma grande variação individual, que poderia haver pacientes de UTI sem vírus algum após 15 dias, com um rastro inflamatório, e outros positivos. Isso mostrava que a abordagem deveria ser individualizada. Um desafio imenso para os médicos que viam chegar uma multidão de doentes graves — diz Dalcolmo, que também é pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Chegada das vacinas virou o jogo

Segundo a cientista, as coisas começaram a mudar no final do ano passado, em plena segunda onda no Brasil, porque o país passou a testar um pouco mais e, sobretudo, porque os médicos já dominavam as boas práticas para o doente grave.

Aconteceram descobertas importantes, de drogas antigas que funcionavam: os corticoides e os anticoagulantes. E os médicos aprenderam a evitar a intubação precoce, a usar a ventilação não invasiva, a pronar o paciente (virar de barriga para baixo).

— Também foram concluídos os estudos que colocaram a pá de cal nas falsas curas da cloroquina e do “kit-covid” com remédio para matar piolho — frisa ela.

E tudo mudou para melhor com a chegada das vacinas.

— As vacinas são a solução para toda virose respiratória aguda e não apenas contra a infecção pelo coronavírus. Mas, no caso da Covid-19, elas representam a criação humana mais extraordinária das últimas décadas. Nenhuma etapa de desenvolvimento foi pulada e, ainda assim, em menos de um ano, tivemos vacinas. Elas viraram o jogo. E se temos uma nova variante como a Ômicron é porque não vacinamos todos, deixamos a África de fora — enfatiza.

Dalcolmo observa que, ao longo de 2021, as vacinas foram reduzindo casos graves e mortes e trazendo a vida da sociedade de volta. O brasileiro gosta de se vacinar, os que recusam são uma minoria, afirma.

Negacionismo e ignorância são os maiores obstáculos

Para a médica, um dos maiores obstáculos ao controle da pandemia no Brasil são o negacionismo e a disseminação da ignorância. Ela conta que recentemente atendeu na Fiocruz um homem que se dizia protegido por uma “máscara invisível”, vendida a ele pelo pastor da igreja que frequenta.

— É muito difícil convencer pessoas movidas por uma fé cega. Consegui fazer esse homem colocar a máscara para entrar no ambulatório. Mas quantas pessoas com "máscaras invisíveis", não vacinadas, estão por aí colocando em risco a si mesmas e aos outros? São desafios que precisamos resolver — destaca a cientista.

Para Dalcolmo, o Brasil verá a luz acesa no fim do túnel quando tiver 80% da população imunizada, zerar os casos graves e as mortes. Como ainda não se chegou a esse patamar, a cientista considera que não deve haver festa de réveillon e tampouco Carnaval.

Ela diz que o surgimento de variantes como a Ômicron é um alerta de que a pandemia não acabou e os cuidados com distanciamento ainda são necessários.

— Esses têm sido tempos terríveis. Mas, em meio a tanta tristeza, vimos coisas boas. O papel da ciência brasileira foi essencial, trazendo conhecimento que salvou vidas. A mídia foi muito importante, combatendo fake news e compilando os números da pandemia. Emergiu um novo voluntariado, que espero ver prosperar nesse país de desigualdade — afirma.

Dalcolmo ressalta, porém, que há um imenso desafio para os próximos anos:

— Temos milhões de pessoas que sofreram sequelas. Estima-se que a metade das pessoas que tiveram Covid-19 tenham sequelas . A incidência de distúrbios neurológicos e psiquiátricos é espantosa e assusta. O maior desafio da medicina será preparar a rede pública para atender às sequelas da Covid-19.