Em expansão no mundo, as infecções por fungos têm em comum a resistência aos tratamentos e a inexistência de vacinas licenciadas para preveni-las ou tratá-las. Vacinas antifúngicas são uma das fronteiras mais distantes de uma área da ciência que tem obtido avanços notáveis, como o desenvolvimento em tempo recorde dos imunizantes contra a Covid-19. Contra os fungos os obstáculos são muitos, mas a necessidade é grande, advertem cientistas e a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Os cientistas não estão preocupados com a emergência em humanos de fungos Cordyceps, como os da série e do game “The last of us”. E sim com microrganismos que, na vida real, adoecem com gravidade 300 milhões de pessoas e matam outras 1,5 milhão por ano no mundo, segundo estimativas da OMS, que salienta serem esses números subestimados.
Vírus e bactérias são inimigos formidáveis, mas os fungos, até agora, têm se mostrado um alvo quase impossível de atingir. Eles causam doenças das quais a maioria das pessoas jamais ouviu falar, mas espécies patogênicas microscópicas são capazes de provocar infecções com até 90% de letalidade, caso da Candida auris resistente em grupos vulneráveis e para a qual não há tratamento.
A C. auris surgiu em 2009 no Japão e hoje está espalhada por pelo menos 30 países, dentre eles o Brasil.
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No fim do ano passado, a OMS lançou uma lista de 19 fungos prioritários para o desenvolvimento de tratamentos e vacinas porque estão se tornando cada vez mais comuns e resistentes ao tratamento.
Há apenas quatro classes de medicamentos contra eles e um pequeno número de novos remédios está em testes. Faltam ainda bons exames de diagnóstico. E tudo o que existe tem custo elevado e disponibilidade reduzida em escala mundial, adverte a OMS.
Os fungos avançam devido a uma combinação de fatores. Entre eles estão as mudanças climáticas, que produzem condições cada vez mais favoráveis a eles. Um exemplo é o fungo causador da devastadora histoplasmose, uma infecção grave dos pulmões e que adora umidade.
Fungos patogênicos também se propagaram na esteira da Aids e da Covid-19, que aumentaram o número de vulneráveis a infecções. O aumento de casos de doenças como câncer e diabetes é outro multiplicador do número de pessoas vulneráveis, cujo sistema imunológico não consegue debelar uma infecção fúngica e permite que eles possam se disseminar.
Mas desenvolver uma vacina contra a C. auris e demais fungos patogênicos está longe de ser trivial, destaca o micologista (especialista em fungos) Carlos Taborda, professor titular e do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).
— O tempo está favorável para os fungos. O fator ambiental é determinante para a propagação da maioria dos fungos. Uma exceção é a C. auris, ligada às condições hospitalares — frisa Taborda.
O grupo dele é um dos poucos no Brasil que desenvolve vacinas contra fungos patogênicos e já tem quatro patentes do tipo. Taborda explica que no caso dos fungos faz mais sentido pensar em vacinas terapêuticas, que tratam a doença, do que nas preventivas, que evitam a infecção. Isso porque não se sabe quando alguém se infecta por fungos. E tampouco se conhece que grupos deveriam receber uma vacina preventiva e quanto tempo duraria a imunidade.
— Não faz muito sentido imunizar pessoas sem saber se vão entrar em contato com o fungo e desenvolver sintomas. O melhor é tratar de forma eficiente e as vacinas terapêuticas são ideais para isso — observa ele.
Uma das dificuldades de desenvolver vacinas e medicamentos contra os fungos é que eles são bem mais parecidos com as pessoas do que vírus e bactérias. Os fungos formam um reino independente, mas estão mais próximos dos animais do que de vegetais. Muito do que mata um fungo também é tóxico para os seres humanos.
Os remédios antifúngicos costumam ser tóxicos para os rins e o fígado e mesmo tratar uma micose nos pés pode levar até uma hepatite se o medicamento não for usado corretamente, alerta Taborda.
Taborda diz que, para funcionar, uma vacina precisa estimular o próprio sistema imunológico a derrotar o fungo. Isto porque no caso dos fungos a principal resposta protetora é a ação direta das células.
— Produzimos anticorpos contra os fungos, mas não são protetores. Estimular as células de defesa a agirem diretamente é mais eficiente — diz Taborda.
O grupo dele se baseia no uso de antígenos (proteínas) de fungos para estimular as células do sistema imunológico a produzir uma classe de substâncias chamadas citocinas. Estas incitam outras células de defesa a engolirem e matarem os fungos.
Ele salienta que os estudos não vão adiante porque, por ora, não há interesse da indústria nesse tipo de vacina.
— Chegamos na fase de testes de camundongos. Mas passar para ensaios com humanos é muito mais caro, complexo e demorado — enfatiza Taborda.
Os fungos patogênicos de maior importância para a América Latina são os causadores da paracoccidioidomicose (PCM). Essa doença é a principal micose sistêmica (que afeta o corpo todo) no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Ela está entre as dez principais causas de morte por doenças infecciosas e parasitárias, crônicas e recorrentes no Brasil, informa o ministério.
A paracoccidioidomicose é causada por fungos do gênero Paracoccidioides. Eles estão presentes no solo e a maioria dos casos é de trabalhadores rurais. Os sintomas da forma aguda são lesões em pele, ossos, intestino, fígado, baço e medula óssea. Já a forma crônica pode levar até um ano para os sintomas se manifestarem. Os pulmões são os mais afetados. Entre as sequelas estão danos no sistema de defesa e nervoso central.
Gustavo Goldman, professor titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto e estudioso do genoma dos fungos, diz que, por ora, vacinas ainda são difíceis de desenvolver. O grupo dele aposta no reposicionamento de drogas já existentes.
— Existe um esforço grande para desenvolver vacinas. Em áreas endêmicas para alguns fungos, seria o ideal. Mas, por enquanto, precisamos encontrar outras soluções — diz Goldman.
Eles estão em todos os lugares
Fungos estão por toda parte, inclusive dentro de nós. Nem todos são nocivos. Na verdade, a imensa maioria não é. E se fosse estaríamos mortos, pois respiramos uma imensa quantidade deles a todo o momento. Eles estão no solo, no ar, na água e dentro de organismos, inclusive nós. Alguns fazem parte de nossa microbiota, muitos estão em nossa pele.
Estimativas indicam que há pelo menos 5,1 milhões de espécies de fungos, a maioria à espera de descrição. Apenas 148 mil tiveram as espécies identificadas. Eles superam as plantas na proporção de 6 para 1.
Fungos degradam poluentes, digerem rochas, ajudam a criar o solo, produzem comida, decompõem os mortos, são a base de remédios essenciais (antibióticos surgiram com eles). De alguns cogumelos se extraem alucinógenos que prometem transformar a medicina.
Enzimas de fungos são a base de remédios e de compostos usados em alimentos. Leveduras que fermentam pão, bolos e cerveja são fungos. Há ainda os muitos cogumelos comestíveis e trufas, que podem custar milhares de reais o quilo.
É verdade que existem os cordyceps da vida real, que infectam formigas e mudam o seu comportamento _ a inspiração de “Last o us”. E algumas espécies respondem por 30% das perdas alimentares do mundo.
Os fungos são tão importantes e onipresentes que influenciam a composição da atmosfera.
Eles podem ser microscópicos como os que nos causam infecções perigosas e aqueles que, ao contrário, nos ajudam a nos proteger das provocadas por bactérias. E podem ser colossais, como a Armillaria, entre os maiores seres vivos do mundo. Um deles se espalha por uma área de dez quilômetros quadrados, no estado americano do Oregon.
Em seu livro essencial sobre fungos, “A teia da vida” (Ed. Fósforo), o biólogo britânico Merlin Sheldrake revela que 90% das plantas dependem das micorrizas (fungos) de suas raízes.
São criaturas extremamente complexas e ainda pouco conhecidas. Tão pouco se sabe que se estima, por exemplo, que fungos ainda maiores do que o do Oregon vivam ocultos sob o solo.
Fungos gostam de temperaturas entre 20C e 30C, mas estão se adaptando a um mundo mais quente, dizem cientistas. O que impede os fungos patogênicos de adoecer um número muito maior de pessoas é o nosso sistema imunológico e a nossa temperatura de 36C, quente demais para eles. Mas alguns fungos são termotolerantes e a ciência alerta que é preciso desenvolver formas de controlá-los, como as vacinas.