Saúde
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Por Bernardo Yoneshigue — Rio de Janeiro

‘Quando descobrimos o diagnóstico, o pai dela foi embora, o que é bem comum entre as mães de crianças atípicas, a maioria de nós é mãe solo. Nós sofremos dois tipos de abandono, primeiro o dos familiares, e segundo o do Estado’, conta Thais Lisboa, de 29 anos, mãe da Maria Luiza, de 10 anos. A história da carioca, de solidão e dificuldades no acesso ao tratamento para a filha, diagnosticada com autismo e epilepsia, não é única.

Trata-se de uma rotina comum entre mães de crianças atípicas ou neurodivergentes, termo utilizados para descrever pessoas com autismo, TDAH, dislexia e outras situações em que funcionamento cerebral destoa do que é considerado “normal” pela sociedade.

A sensação de desamparo é compartilhada entre as mulheres que participam do SUStenta Cannabis, coletivo que auxilia mães de baixa renda no acesso à cannabis medicinal e promove consultas, rodas de conversa, encontros de trocas e apoio para famílias que muitas vezes não têm a quem recorrer.

— O coletivo me ajuda de diversas formas, é uma verdadeira terapia. É muito gratificante ver a evolução dos filhos umas das outras. Nós acabamos nos acostumando com esse abandono do Estado, esse abandono geral. Então quando encontramos um local que está ali para te acolher de dar um suporte, algumas mães acham até estranho — diz Thais, que mora na capital fluminense.

Apesar desse cenário de entraves para acessar diagnósticos, consultas e tratamentos na rede pública, são muitos os benefícios relatados pelas mães quando conseguem o acesso à cannabis medicinal, depois de tentativas mal sucedidas com outras linhas de medicamentos. É o que conta Lenizia Corrêa Rangel, de 43 anos, mãe do Pedro e do Lucas, de 14 e 5 anos, ambos com epilepsia.

— As medicações convencionais não estavam funcionando. O meu mais velho tinha convulsões muito intensas, ficava dois minutos sem respirar. E a frequência estava aumentando. Eu morava distante de um hospital, nossa preocupação era muito grande. Mas o óleo ajudou bastante, as crises começaram a ficar espaçadas, ele começou a conseguir dormir. Hoje em dia é um controle muito melhor. Mas infelizmente o SUS não fornece e tem poucos médicos disponíveis que prescrevem — afirma a moradora de São Francisco de Itabapoana, no Rio de Janeiro.

O interesse científico pela cannabis medicinal ganhou um impulso na década de 1990 com a identificação no corpo humano do sistema endocanabinoide, que atua na regulação de processos fisiológicos do corpo. Os cientistas descobriram que não apenas os canabinoides derivados da planta interagem com esse sistema, como o próprio organismo produz substâncias com esse potencial, os endocanabinoides.

Esse papel dos mecanismos na saúde levou ao início de uma nova era de estudos clínicos para avaliar a eficácia da cannabis medicinal para os mais diversos diagnósticos. Recentemente, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) emitiu uma nota técnica em que destaca o acúmulo de evidências para o tratamento de transtornos neuropsiquiátricos, epilepsias refratárias (resistentes aos medicamentos convencionais), entre outros diagnósticos.

Esse potencial é alto especialmente para as epilepsias infantis provocadas pelas síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut, com redução de até 50% das crises segundo uma revisão de trabalhos publicada no periódico Scientific Reports. Porém, Lenizia conta que dificilmente as mães têm o diagnóstico genético exato da causa das epilepsias pela falta de acesso à infraestrutura necessária para isso.

— Com o primeiro, o Pedro, eu fiquei sabendo do diagnóstico só com um ano e três meses depois, quando eu finalmente consegui pagar uma consulta com um neurologista particular porque não consegui na época pelo SUS. São meses ou anos para marcar uma consulta. Sabemos que é uma epilepsia refratária de difícil controle, mas não tenho o diagnóstico fechado pela dificuldade em conseguir os exames com geneticistas. E não é só isso, meus filhos precisam de um carrinho adaptado para andar, e você não encontra no SUS — relata.

Depois de ingressar no coletivo, Lenizia passou a ajudar na coordenação do grupo e na assistência às outras mães. Para ela, que conta ter sofrido um afastamento da família após os diagnósticos dos filhos, ter o espaço de troca é um “suporte emocional” muito grande.

— As mães que chegam no coletivo são mães que estão muito pressionadas, depressivas, mães solos, que foram abandonadas. Que são muito cobradas pela sociedade, como se nós fossemos culpadas. É uma sobrecarga muito grande, nós acabamos vivendo isoladas. Então estar no coletivo é uma espécie de terapia, nos dá um suporte emocional muito grande — afirma.

Acesso à cannabis medicinal pelo SUS

Um dos objetivos do SUStenta Cannabis é também defender a inclusão da modalidade terapêutica no Sistema Único de Saúde (SUS), ampliando o acesso ao que muitas vezes transforma o dia a dia de uma criança com transtornos neurológicos, mas que ainda é restrito no Brasil pelo alto custo e pelo baixo conhecimento dos profissionais.

— Nós observamos que muitas mães colocam o dinheiro que não têm para conseguir pagar um plano de saúde na ilusão de que estarão cobertos. Só que na realidade o serviço dos planos também é muito ruim, e muitas vezes as mães precisam ir à Justiça — conta o coordenador do SUStenta Cannabis, Nathan Kamliot, médico especialista em cannabis medicinal e em saúde pública pela Universidade Católica da Lovaina, na Bélgica.

Em relação à cannabis, as operadoras de saúde de fato não são obrigadas a cobrir os medicamentos, já que a legislação diz que apenas medicamentos de uso domiciliar para câncer devem ser custeados. A luta pela inclusão dos medicamentos na rede pública ganhou um novo capítulo recentemente com a sanção de uma lei no Estado de São Paulo que inclui a terapia no SUS, ainda pendente de regulamentação.

Essas legislações, que já foram sancionadas em outras localidades, buscam ampliar o acesso aos medicamentos à base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC), duas das cerca de 500 substâncias da planta Cannabis sativa. No entanto, sozinhas não resolvem o problema, uma vez que ainda pode levar anos para a mãe conseguir o diagnóstico e a prescrição adequada.

— Quando descobrimos que o Ayan tinha epilepsia, automaticamente fomos ao SUS aqui em Osasco. Mas já faz dois anos que estamos na fila de espera para conseguir acesso a um neuropediatra. Não temos acesso aos médicos, quando conseguimos demora meses, muitas vezes não tem esses exames clínicos mais específicos. O psicológico fica muito abalado, é muito sofrido para a gente — diz Keila Amaro, de 34 anos, mãe do Ayan, de 5.

Hoje, a cannabis medicinal está disponível no país majoritariamente por meios privados. Primeiro, o médico prescreve o medicamento ao paciente, depois é o próprio paciente quem precisa dar entrada na Anvisa para que seja concedida uma autorização para importação. Em seguida, com a receita e o aval da agência, ele pode fazer um pedido com uma empresa que traga o produto de fora.

Dados da Anvisa mostram que em 2015, primeiro ano em que a importação foi permitida no Brasil, a agência concedeu 850 autorizações. De lá para cá, a demanda saltou 9.311%, chegando a 79.995 novos pacientes com o aval em 2022 – praticamente o dobro do ano anterior, quando foram pouco mais de 40 mil.

A demanda, porém, ainda não condiz com o número de pacientes que poderiam se beneficiar da cannabis. Na nota técnica da Fiocruz, a instituição defende que “é preciso ampliar a capacitação de médicos e outros profissionais de saúde sobre o uso terapêutico”, e que é “indispensável assegurar, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), uma regulamentação abrangente e eficiente, que viabilize a produção, prescrição e acesso gratuito e universal”. Enquanto isso não acontece, existem associações brasileiras que conseguem plantar a Cannabis sativa por meio de decisões judiciais, e comercializam o óleo a preços mais acessíveis no país.

Escolas não estão preparadas

Outro ponto em comum que as mães relatam enfrentar dificuldades durante os encontros do SUStenta Cannabis é a falta de preparo das escolas em receber as crianças neurodivergentes.

— Para mim, a escola é a pior parte. Praticamente todo ano tenho um embate no início do ano letivo para garantir as coisas que já eram para ela (Maria Luiza) ter automaticamente, como a mediação com um profissional e o material adaptado. Já passei por isso tanto em escola pública como em particular, as duas não estão preparadas. Eu só consegui uma mediadora porque fui na defensoria pública — conta Thais.

Além da falta de estrutura para lidar com as crianças, Nathan cita que muitas mães contam serem solicitadas a medicarem seus filhos com medicamentos psicotrópicos para que eles fiquem “mais calmas”.

Os fármacos, que atuam no Sistema Nervoso Central (SNC), não devem ser indicados para crianças a não ser em casos em que realmente há a necessidade, como durante crises epilépticas ou transtornos que demandam os medicamentos.

— Nós atendemos muitas crianças que são crianças, gostam de correr, brincar e tem mais dificuldade em ficar sentadas. Mas em vez de adaptar o ensino, muitas escolas solicitam que a mãe medique a criança com um psicotrópico, como ritalina, rivotril — diz o médico.

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