A aprovação inédita de uma vacina para a malária pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2021, e os resultados recentes de uma nova candidata desenvolvida pela Universidade de Oxford, que aumenta a eficácia contra a doença, são celebrados pela comunidade científica e aproximam o planeta da meta de reduzir em 90% os casos até 2030, em comparação com os números de 2015, e eliminar o patógeno na década seguinte.
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No entanto, embora despertem esperança para intensificar as estratégias de prevenção, principalmente em países da África onde o diagnóstico tem índices mais dramáticos e letalidade maior, especialistas explicam que os imunizantes não serão úteis no contexto brasileiro. A realidade chama atenção para a importância do desenvolvimento nacional de vacinas, que podem ser direcionadas à forma da doença prevalente no país e de fato influenciar a epidemiologia da malária aqui.
— As duas vacinas atuais são para o plasmodium falciparum, que é de fato a espécie causadora da malária mais virulenta e responsável pela maior mortalidade no mundo. Mas ela não é a que predomina no Brasil, aqui é o plasmodium vivax. Isso significa que essas vacinas não vão ter muita utilidade para os casos brasileiros da doença, que permanecem altos — explica a professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) Irene Soares, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Vacinas (NAP) da universidade.
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Os dois imunizantes que miram o P. falciparum são de fato os mais avançados hoje. O primeiro recebeu no ano passado o aval da OMS após mais de três décadas em estudos. Chamado de RTS, ou Mosquirix, ele foi desenvolvido pela farmacêutica GSK e é não apenas a primeira vacina para malária, como também inédito na proteção contra um parasita.
Neste mês, resultados dos estudos clínicos com uma formulação semelhante, desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, foram publicados na revista científica The Lancet. Os dados mostraram que a nova vacina, também para o P. falciparum, tem uma eficácia maior, de aproximadamente 75%. A conclusão da última etapa dos testes, que está sendo conduzida com participantes em quatro países, é aguardada ainda neste ano, o que pode levar em breve também à aprovação pela OMS.
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As aplicações, consideradas um marco histórico no combate à doença, são destinadas a bebês. De acordo com a OMS, em 2020 foram 627 mil mortes pela malária, com crianças menores de 5 anos representando 70% desse total – a maioria no continente africano. A situação epidemiológica, que vinha melhorando desde o início dos anos 2000, piorou com a pandemia. Em 2020, foram registrados 69 mil óbitos a mais que em 2019 – 47 mil deles associados à interrupção de medidas de prevenção e tratamento por causa da emergência sanitária da Covid-19.
— Se nós quisermos atingir o objetivo de erradicar a malária do planeta até o ano 2040, ou talvez até 2045 em virtude da pandemia, é preciso erradicar os parasitas, e não vamos conseguir isso só com medicamentos, precisamos de vacinas. É uma meta factível, porque hoje nós temos um grande número de organizações trabalhando para isso. Como das doenças tropicais ela é a que mais mata no mundo, ela é também a que tem o maior aporte de investimentos — explica o professor do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colaborador da Medicines for Malaria Venture, Luiz Carlos Dias, membro da Academia Brasileira de Ciências.
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Prevalência de parasitas e desenvolvimento de vacinas no Brasil
Porém, o fato de o Brasil ter a prevalência de um outro parasita, que não é combatido com esses imunizantes, faz com que a perspectiva de estratégias mais eficazes de prevenção seja diferente por aqui. Enquanto o P. falciparum é responsável por mais de 90% dos casos mundiais de malária, segundo a OMS, 83% dos diagnósticos brasileiros são provocados pelo P. vivax, de acordo com o Ministério da Saúde. Ainda não há aplicações para proteger contra ele.
A realidade expõe a importância de se investir no desenvolvimento de vacinas nacionais, que podem mirar o contexto epidemiológico da malária aqui. Isso porque, se por um lado instituições como a Fiocruz e o Butantan garantem uma capacidade de produção de imunizantes, a criação de imunobiológicos desde o conceito até os testes, e a eventual disponibilização para os brasileiros, não é uma área dominada no país.
É o que explica a pesquisadora Irene Soares, da USP, que coordena na universidade o grupo que desenvolve a primeira vacina do Brasil para a doença, em parceria com o Centro de Tecnologia de Vacinas (CTAVacinas), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e com a Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos.
A formulação, que busca proteger contra as três variantes conhecidas do P. vivax, induziu anticorpos de forma bem sucedida em camundongos nos testes pré-clínicos, e agora está nas últimas etapas para o início dos estudos em humanos. Se tudo der certo, ela conta que a expectativa é começar a fase 1 dos estudos com voluntários já no ano que vem – a primeira de três fases que antecedem a solicitação da aprovação para uso da vacina na população à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
— A nossa vacina é baseada na mesma proteína que a das duas outras vacinas, a Mosquirix e a de Oxford. É uma proteína que reverte o esporozoíto, a forma do parasita liberada na pele quando o mosquito (Anopheles) pica o indivíduo. Só que apesar de serem a mesma proteína nas duas espécies de plasmodium, elas são diferentes na estrutura da região central. Então basicamente a primeira resposta do hospedeiro contra o parasita é gerar anticorpos contra essa proteína, que é o objetivo da vacina — explica a pesquisadora.
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Desafios na criação de imunizantes nacionais
Ela pontua que um dos desafios para o imunizante é o fato de ser um parasita, microrganismo cuja biologia é mais complexa que a de outros patógenos, como vírus e bactérias, que já contam como um amplo arsenal de vacinas. Uma dessas características é que, mesmo após a infecção, partes do protozoário permanecem latentes no fígado do paciente, que em semanas ou até anos depois podem provocar casos de recaída da malária – outro evento que o imunizante busca impedir.
Além disso, os especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam que há os entraves conhecidos no desenvolvimento da ciência no Brasil, como o sucateamento das instituições de pesquisa, a falta de investimentos financeiros e de recursos humanos devido à migração de profissionais capacitados para países que oferecem melhores oportunidades.
— A diáspora hoje está muito acentuada, nós nunca vimos tantas pessoas jovens com potencial saindo do Brasil como nós estamos vendo agora. Nunca a ciência brasileira sofreu tantos cortes como está sofrendo. Nós temos condição de fazer, mas se você não investe em melhoria das instituições, na infraestrutura, em compra de equipamentos, em contratação de pessoal, se não oferece condições para os jovens aqui seguirem na carreira de pesquisador, essas tecnologias não saem do papel — avalia Carlos Dias, da Academia Brasileira de Ciências.
É o que pensa também a vice-diretora de Pesquisa e Inovação do Instituto Leônidas e Maria Deane - Fiocruz Amazônia, Stefanie Lopes. Pesquisadora de malária na instituição, ela está à frente dos estudos com uma outra vacina, também para o P. vivax, que está sendo desenvolvida em parceria com universidades japonesas.
Lopes explica que a Fiocruz Amazônia está auxiliando nas avaliações pré-clínicas do imunizante, utilizando amostras do parasita coletadas de pessoas infectadas na região, que é endêmica para a malária. Os cientistas então avaliam se esses parasitas conseguem provocar uma infecção em amostras que contém os anticorpos gerados pela vacina, em laboratório.
A tecnologia utilizada pelo imunizante chama-se vetor viral, semelhante à da aplicação contra a Covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca, por exemplo. Ela utiliza um outro vírus que não infecta o corpo humano ou se replica no organismo para atuar como um mensageiro, levando dentro dele a proteína do parasita da malária que induzirá a resposta imunológica.
— Nós estamos fazendo essa avaliação pré-clínica, que antecede os ensaios clínicos em humanos, para validar que essa formulação vacinal tem uma boa resposta, ou seja, que os anticorpos produzidos por essa a imunização vão levar a uma proteção da malária. Ela envolve mais de um pedaço do parasita, de diferentes etapas do ciclo de vida dele, para tentar mitigar duas etapas diferentes. A ideia é que isso faça com que o parasita não se desenvolva nem no hospedeiro humano, durante a infecção, nem no hospedeiro invertebrado, que é o mosquito, o seu vetor que carrega a doença para outras pessoas — explica a pesquisadora.
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Ela ressalta que, embora haja um número muito menor de vacinas em desenvolvimento para o P. vivax – devido ao menor número de casos no mundo e a menor letalidade –, a malária provocada por essa espécie ainda é responsável por um número bastante extensivo de casos, que levam a situações graves e a uma sobrecarga nos sistemas de saúde.
— No Brasil, uma das metas no plano de eliminação de malária pelo Ministério da Saúde para 2035 é eliminar o parasita, mas nós sabemos que as ferramentas que temos hoje disponíveis ainda não são suficientes para atingirmos esse objetivo. Então uma vacina é a maior aliada para você reduzir os casos e conseguir eventualmente eliminar a doença do país — diz Lopes.