Brasil

Aílton Krenak compartilha sabedoria dos povos da floresta para 'adiar o fim do mundo'

Livro recém-lançado enaltece cultura indígena e prega humanidade mais diversa como antídoto para o planeta; autor participará de debates na Bienal e no IMS
O líder indígena Ailton Krenak Foto: Ana Branco / Agência O Globo
O líder indígena Ailton Krenak Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO - "Estamos alertando há 30 anos, ninguém fez nada... Agora não dá mais tempo de salvar o planeta. Só nos resta beber". O desabafo da ativista Edith Lions durante um jantar de família em "Years and Years" define a distopia sugerida como pano de fundo na série da HBO, ambientada em meados dos anos 2020. O mundo está submerso no caos das mudanças climáticas. A disputa comercial entre Estados Unidos e China levou à detonação de uma bomba nuclear, matando milhares e causando e estragos no capitalismo. Enquanto isso, direitos civis estão sendo atropelados por um nacionalismo populista que usa medo para ganhar eleições, aguçando a crise da democracia liberal. Tudo isso gera brigas, falência, agonia e morte entre os protagonistas.

Em outras palavras, a produção projeta um futuro em que se concretizam as piores previsões do autor israelense Yuval Harari (" Sapiens " e " 21 lições para o século 21 ") e usa uma família fictícia de Manchester, no Reino Unido, para ilustrar os impactos na vida da classe média, enquanto a edição e a trilha sonora frenéticas reforçam um contexto de fim do mundo. Assisti aos seis episódios de "Years and Years" ao longo de uma semana, o que encurtou minhas noites de sono. Os neurônios precisavam de mais ou menos uma hora pra se acalmar depois de cada capítulo. Por sorte, caiu nas minhas mãos um livro do tamanho de um estojo de primeiros socorros: "Ideias para adiar o fim do mundo", do jornalista e líder indígena Ailton Krenak.

Adaptação de duas palestras e uma entrevista realizadas em Portugal entre 2017 e 2019, a publicação recém-lançada pela Companhia das Letras tem 72 páginas preenchidas com a lucidez do ambientalista descendente do povo Krenak, que vive no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. O autor tem lugar de fala para se referir ao fim do mundo. Há décadas luta contra a pressão econômica sobre reservas indígenas no país. Em 1987, foi o representante dos povos nativos do Brasil para falar à Assembleia Constituinte, no renascimento da República. Dirigiu-se aos deputados com o rosto pintado de tinta preta de jenipapo. Em 2015, sua etnia viu o mundo como conhecia acabar quando se rompeu a barragem de rejeitos da Samarco, em Mariana, matando o Rio Doce. A própria existência dos krenaks dependia do Rio Doce, que eles chamam de Watu ("avô"). Hoje, os ribeirinhos do vale sobrevivem às custas de verba de assistência, camihões-pipa e entrega de alimentos.

"Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa", escreve Krenak, que estará no Rio este fim de semana para dois eventos, no sábado. Às 13h, ele participa de um debate sobre a ação nociva do homem na natureza com as jornalistas Ana Lúcia Azevedo e Cristina Serra durante a Bienal do Livro, no Riocentro . E às 17h, o autor conversa com a jornalista Renata Tupinambá no Instituto Moreira Salles, na Gávea, onde está em cartaz uma exposição da fotógrafa Claudia Andujar sobre o povo ianomami.

"O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar nossa demanda". Ao longo de seu discurso, o autor usa tom didático para expor nacos do saber indígena, construindo pontes entre as nossas culturas, mas sem jamais igualar uma à outra. A ideia de humanidade, escreve ele, deveria dizer respeito à coexistência das diversas narrativas. "Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania".

O autor reprova o conceito convencional de humanidade, "forjado pelo europeu", que segundo ele não engloba caiçaras, índios, quilombolas e outros povos que, por viverem "agarrados" à terra, são relegados a uma "sub-humanidade". Essa noção limitada de homo sapiens não permitiria compreender, por exemplo, diversas comunidades indígenas que conferem características humanas a elementos como pedras, rios e montanhas. Os krenaks, descreve o ativista, conversam com uma montanha que fica perto de sua aldeia. É ela que diz se um dia vai ser bom, próspero, "ou se é melhor ficar quieto". Entretanto, quando um morador da aldeia afirma que aquele rio é sagrado ou que aquela montanha fala, as pessoas desdenham dizendo que "isso é folclore deles". "Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista".

Em entrevista ao GLOBO , o líder ianomami Davi Kopenawa esclareceu que os membros da sua etnia não querem explorar minério em suas terras, como vem sendo proposto pelo governo. Da mesma forma, Krenak rejeita a noção de que os povos da floresta desejam se integrar ao resto da sociedade ocidental. "A ideia de nós, humanos, nos descolarmos da terra, vivendo uma abstração civilizatória, é absurda. Suprime a diversidade, nega a pluralidade de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino, se possível a mesma língua para todo mundo". E, também como Kopenawa, o autor denuncia a invasão de terras ianomamis, no Norte do país. "Esse território está assolado pelo garimpo, ameaçado pela mineração, pelas corporações que não toleram esse tipo de cosmos, o tipo de capacidade imaginativa e de existência que um povo originário como os Yanomami é capaz de produzir".

De acordo com Krenak, famílias indígenas de diferentes regiões do Brasil estão vivendo uma escalada de tensão nas relações com o Estado. Uma tensão que não é de agora, mas que "se agravou com as recentes mudanças políticas introduzidas na vida do povo brasileiro".

Conheci Krenak em dezembro de 2017, quando o encontrei para uma entrevista , no Rio. Foi uma tortura editar aquela conversa para encaixá-la no espaço delimitado no jornal. Enquanto lia "Ideias para adiar o fim do mundo", comecei a fazer um índice remissivo para, depois, reproduzir trechos interessantes e que ajudam a gente a refletir sobre para onde estamos indo como humanidade. Quando me dei conta, estava assinalando pedaços de todas as páginas. Teria que transcrever o livro quase todo. A obra se vale da oralidade com que os povos da floresta passam suas tradições de geração em geração para transmitir, em bom português, o que Krenak descreve como uma provocação: "Adiar o fim do mundo é sempre poder contar mais uma história".

Em "Years and Years", a matriarca dos Lions, Muriel Deacon, diante de catástrofes como milhares de britânicos desabrigados por 80 dias de chuvas torrenciais e da descoberta de campos de concentração para imigrantes ilegais, faz uma crítica ao consumismo e reconhece que "a culpa é de todos nós". Em seu livro, Krenak cita pensadores como José Mujica e Boaventura de Sousa Santos para refletir sobre o papel de cada um de nós nesse drama que vivemos. Ele leva em conta que o mundo atual é resultado de um processo de trezentos anos, mas, ao mesmo tempo, questiona: "Qual é o mundo que vocês estão agora empacotando para deixar às gerações futuras? Há algo de insano quando nos reunimos para repudiar esse mundo que recebemos agorinha, no pacote encomendado pelos nossos antecessores; há algo de pirraça nossa sugerindo que, se fosse a gente, teríamos feito muito melhor".