RIO - "Marcelle de Castro, 24 anos, por enforcamento. Daisy Brandão, 24, por tiros. Daphne, 22, por tiros. Não identificada, 19, por facadas". Esta é parte de uma lista de mulheres transexuais mortas lida pela ativista Indianara Siqueira — também ela trans — em uma cena do longa documental "Indianara", que será exibido no Festival de Cannes a partir do próximo domingo, dia 19. A luta para que mulheres trans tenham direito a estudar , a trabalhar, a se casar e a simplesmente viver acompanha a ativista há 30 anos, desde que começou sua militância em Santos (SP).
Agora, prestes a completar 48 anos, no próximo sábado, Indianara conta um pouco de sua trajetória e dos fatos recentes que a marcaram em entrevista exclusiva ao GLOBO.
Esta semana é particularmente especial para a ativista: além de estar a poucos dias de ter o filme que a retrata exibido em Cannes, nesta terça-feira (15) comemora-se o Dia do Orgulho de Ser travesti e Transexual, e na sexta-feira (17) é Dia Internacional de Combate à LGBTfobia.
O filme 'Indianara' destaca o contraste de demandas entre pessoas trans e cisgêneros, mulheres e homens, negros e brancos. Você é casada com Maurício, um homem, branco e cis. Você vive esse contraste. Como é isso?
É difícil, né? Sou casada com um homem que tem todos os privilégios da nossa sociedade. Além de homem, é cisgênero, branco e hétero. Todos os dias discuto isso em casa. Todos os dias tenho que apontar "isso é machismo", "isso é racismo". Às vezes, é cansativo. É um processo de educação também.
Você vive um relacionamento sorodiscordante. Muitos se surpreendem quando descobrem que não é você, e sim o seu marido que tem HIV/Aids?
Sim, sempre que eu falo que nosso relacionamento é sorodiscordante, as pessoas pensam logo que quem tem o vírus sou eu, a trans, a "puta". Isso é reflexo da transfobia. A minha reação é tentar educar sobre isso. Mas também não me importo que falem que eu tenho HIV. Eu não vejo isso como algo ofensivo. Só não é verdade. O que eu quero é que a vida de quem tem HIV seja melhor.
E há um grande aumento no número de infecções por HIV entre jovens hoje. Por que isso acontece?
Por falta de políticas de prevenção. O país, que foi pioneiro no tratamento do HIV, deixou de ter essa postura. No Brasil, a falta de investimento leva à não prevenção ou à ilusão de que o HIV não é mais um problema. Isso é mentira. A prevenção foi abandonada, os debates foram abandonados, o Sistema Único de Saúde (SUS) está sendo sucateado. Mas o HIV é um problema de toda a sociedade. Tem que se falar de HIV no café da manhã, no almoço e no jantar. Em todas as horas.
No início de maio, Larissa Rodrigues da Silva, transexual de 21 anos, foi morta a pauladas na zona sul de São Paulo. Você se sente frustrada por esses crimes brutais contra trans ainda acontecerem?
Não é exatamente frustração, mas me deixa sem horizonte. Ainda mais que o governo Bolsonaro não se importa com essas questões, então não tenho nenhuma esperança de que vá melhorar. São crimes muito frequentes e que praticamente não são investigados. O grupo TransRevolução ainda faz um trabalho de levantamento que eu fazia anos atrás. É um trabalho muito pesado.
Ainda é muito difícil contabilizar esse tipo de crime? Em geral, os levantamentos são dependentes do que sai na imprensa, não?
Os levantamentos são feitos a partir de dados da imprensa, sim. Em alguns casos, a gente descobre (o assassinato) por meio de amigos. Ainda é um crime extremamente subnotificado. Muitas vezes, a mulher trans é identificada na delegacia com o nome masculino, então há alguns empecilhos para a notificação correta. Acredito que, para melhorar isso, só com investimento em educação sobre pessoas LGBTI+. Tanto o feminicídio quanto a LGBTIfobia só vão ser combatidos se isso for debatido nas escolas . A educação ainda é o melhor caminho.
Quando você fez sua transição de gênero?
Comecei aos 12 anos a tomar hormônios, sem nenhum acompanhamento, o que é muito errado. Não tinha orientação adequada..Hoje já existem núcleos de acompanhamento de crianças e adolescentes, como no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Os pais que procuram esses núcleos são aconselhados, há acompanhamento psicológico... E, para tomar hormônios ou fazer qualquer cirurgia, é necessário completar 18 anos.
“A grande maioria das trans que chegam até mim saíram cedo de casa, abandonaram os estudos porque não conseguiam ir à escola, não contaram com a aceitação dos pais. A sociedade não nos prepara para ter filho trans.”
Hoje, para as trans mais jovens, o cenário está mais fácil?
Hoje há mais acesso a informações. As minhas referências eram Roberta Close, Rogéria. Só que se tratava da espetacularização das trans. Não havia discussão sobre trans participando do sistema educacional, sendo inserida no mercado formal de trabalho. A grande maioria das trans que chegam até mim saíram cedo de casa, abandonaram os estudos porque não conseguiam ir à escola, não contaram com a aceitação dos pais. Ainda hoje, são muito poucos os pais que aceitam. A sociedade não nos prepara para ter filho trans.
Quais são as diferenças dos preconceitos sofridos por uma mulher trans e um homem trans?
Uma mulher trans vai sofrer machismo e misoginia, como qualquer outra mulher, e, só depois que descobrirem que é uma trans, ela vai sofrer transfobia. Se ela for negra, ela vai sofrer primeiro o racismo. Depois essas outras discriminações. Já no caso de um homem trans branco, ele não vai sofrer preconceito nenhum até descobrirem que ele é trans. Até a chegada da transfobia, ele vai ser tratado com os privilégios que um homem branco tem.
“O peito virou quase uma segunda genitália. É por isso que as mulheres enfrentam dificuldade até para amamentar em público. As pessoas acham que é errado ver mamilos.”
Quando você se percebeu ativista pelos direitos humanos?
Saí de casa, no Paraná, aos 18 anos, e fui para Santos. Na época, a cidade paulista era conhecida como a capital mundial da Aids, e havia uma associação direta: quem era trans morria de Aids. Mas então uma irmã minha, que era hétero, morreu de Aids. Isso me deu a real dimensão do problema. Não era uma doença só de um grupo. Era algo grande. E aí comecei a querer me informar mais sobre o assunto. Parei um dia num centro de saúde para conversar... Era 1992, uma época em que quem se infectava morria muito rapidamente. E assim eu comecei a ser ativista pela prevenção e pela causa das pessoas com HIV, passei a divulgar informações. E uma coisa foi levando à outra. A partir do ativismo relacionado ao HIV/Aids, fui para a luta pelos direitos humanos em geral, a luta por educação.
Em 1996, na 4ª Conferência Municipal de Saúde de Santos, você foi uma das primeiras a propor o uso do nome social. Como o uso do nome social ajuda a compreender sua identidade?
Essa foi uma grande briga da comunidade LGBTI+. Eu me considero a mãe do nome social. Nessa conferência, propus o uso do nome social no prontuário médico, para que a mulher trans pudesse ser internada na ala feminina, por exemplo. E para que casais LGBTI+ pudessem ser considerados cônjuges oficiais no prontuário, tanto para um ter informações médicas sobre o outro em caso de doença, quanto para, em situação de morte, ter direito a pensão e a herança. Isso começou a valer naquele ano em Santos. E se espalhou depois por vários outros lugares. Também entrou depois em outras searas, como na educação: trans passaram a poder usar o nome social nas universidades, escolas.
Você foi também uma das apoiadoras das primeiras edições da Marcha das Vadias no Rio. Por que ela foi tão discriminada?
É o estigma trazido pelo nome "vadia", que escolhemos de propósito. A luta da marcha vai além de pedir direito de trabalhar fora, por exemplo: exige que as mulheres possam ter o direito de fazer o que quiserem, desde que não firam outros. Não existe nada na lei brasileira, por exemplo, que diga que a mulher com peito de fora tem que ser detida. Isso é puramente uma questão de moral. É uma falácia da nossa polícia.
Por que você acha que o tabu em relação ao peito feminino ainda se impõe tanto?
A grande questão é o mamilo. Na praia, as mulheres podem ficar com o peito quase todo de fora, mas o mamilo não pode aparecer, senão... pronto! O peito foi sexualizado. O peito virou quase uma segunda genitália. A forma feminina é criminalizada. É por isso que as mulheres enfrentam dificuldade até para amamentar em público. As pessoas acham que é errado ver mamilos.
“A morte da Marielle é muito chocante porque éramos amigas de partido e de militância”
Você é fundadora da Casa Nem e militou no PSOL. Era próxima da vereadora Marielle Franco?
A morte da Marielle é muito chocante porque éramos amigas de partido e de militância. Marielle não era muito de sair na noite, então a gente se cruzava mais na militância mesmo. Eu a conheci em 2010, quando sofri ameaças de morte e tive que recorrer à Alerj. Ela era assessora parlamentar da Comissão de Direitos Humanos. Eu era uma pessoa de periferia, ela era uma mulher de favela. Uma complementava a outra. Ela sempre convidava a Casa Nem (organização fundada por Indianara em 2016) para discussões que envolviam a comunidade LGBTI+ na Alerj e praticamente obrigava os parlamentares a saber quem éramos.
No filme, sua reação à morte de Marielle parece ter sido de choque...
No dia do assassinato da Marielle, tinha recebido uma ameaça. Veio pelo whatsapp: uma travesti da Zona Oeste, onde eu moro, tinha sido assassinada pouco tempo antes, e a mensagem dizia para eu tomar cuidado porque eu seria a próxima. Estava em casa, estressada, e recebi por whatsapp a notícia de que o carro da Marielle tinha sido alvejado. Quando vi que ela tinha sido executada, entrei em desespero. Amigos começaram a me mandar mensagens dizendo que iriam me tirar da Zona Oeste. Peguei o primeiro trem, às 5h da manhã, para a Casa Nem. Fomos o primeiro grupo a chegar à Cinelândia, com faixas. Ela deixou um legado e criou proteção para outros. Quem a matou não sabia o tamanho de Marielle. Hoje ela é gigante. Depois da morte dela, instalei sete câmeras na minha casa e passei a seguir um protocolo de segurança. Sempre que eu olho os monitores, lembro que corro risco por lutar pelos direitos humanos, por tentar melhorar o mundo. Isso é muito louco.