Brasil Celina

'Corro risco de morte por lutar por direitos humanos. Isso é louco', diz ativista trans Indianara Siqueira

Ela terá sua história contada no Festival de Cannes, em um filme que acompanha sua trajetória desde 2016
Indianara tem vida retratada em filme que mostra sua luta pela população trans Foto: Arte de Nina Millen sofre foto de Divulgação de Bruno Ryfer
Indianara tem vida retratada em filme que mostra sua luta pela população trans Foto: Arte de Nina Millen sofre foto de Divulgação de Bruno Ryfer

RIO - "Marcelle de Castro, 24 anos, por enforcamento. Daisy Brandão, 24, por tiros. Daphne, 22, por tiros. Não identificada, 19, por facadas". Esta é parte de uma lista de mulheres transexuais mortas lida pela ativista Indianara Siqueira — também ela trans — em uma cena do longa documental "Indianara", que será exibido no Festival de Cannes a partir do próximo domingo, dia 19. A luta para que mulheres trans tenham direito a estudar , a trabalhar, a se casar e a simplesmente viver acompanha a ativista há 30 anos, desde que começou sua militância em Santos (SP).

Agora, prestes a completar 48 anos, no próximo sábado, Indianara conta um pouco de sua trajetória e dos fatos recentes que a marcaram em entrevista exclusiva ao GLOBO.

Esta semana é particularmente especial para a ativista: além de estar a poucos dias de ter o filme que a retrata exibido em Cannes, nesta terça-feira (15) comemora-se o Dia do Orgulho de Ser travesti e Transexual, e na sexta-feira (17) é Dia Internacional de Combate à LGBTfobia.

O filme 'Indianara' destaca o contraste de demandas entre pessoas trans e cisgêneros, mulheres e homens, negros e brancos. Você é casada com Maurício, um homem, branco e cis. Você vive esse contraste. Como é isso?

É difícil, né? Sou casada com um homem que tem todos os privilégios da nossa sociedade. Além de homem, é cisgênero, branco e hétero. Todos os dias discuto isso em casa. Todos os dias tenho que apontar "isso é machismo", "isso é racismo". Às vezes, é cansativo. É um processo de educação também.

Você vive um relacionamento sorodiscordante. Muitos se surpreendem quando descobrem que não é você, e sim o seu marido que tem HIV/Aids?

Sim, sempre que eu falo que nosso relacionamento é sorodiscordante, as pessoas pensam logo que quem tem o vírus sou eu, a trans, a "puta". Isso é reflexo da transfobia. A minha reação é tentar educar sobre isso. Mas também não me importo que falem que eu tenho HIV. Eu não vejo isso como algo ofensivo. Só não é verdade. O que eu quero é que a vida de quem tem HIV seja melhor.

E há um grande aumento no número de infecções por HIV entre jovens hoje. Por que isso acontece?

Por falta de políticas de prevenção. O país, que foi pioneiro no tratamento do HIV, deixou de ter essa postura. No Brasil, a falta de investimento leva à não prevenção ou à ilusão de que o HIV não é mais um problema. Isso é mentira. A prevenção foi abandonada, os debates foram abandonados, o Sistema Único de Saúde (SUS) está sendo sucateado. Mas o HIV é um problema de toda a sociedade. Tem que se falar de HIV no café da manhã, no almoço e no jantar. Em todas as horas.

No início de maio, Larissa Rodrigues da Silva, transexual de 21 anos, foi morta a pauladas  na zona sul de São Paulo. Você se sente frustrada por esses crimes brutais contra trans ainda acontecerem?

Não é exatamente frustração, mas me deixa sem horizonte. Ainda mais que o governo Bolsonaro não se importa com essas questões, então não tenho nenhuma esperança de que vá melhorar. São crimes muito frequentes e que praticamente não são investigados. O grupo TransRevolução ainda faz um trabalho de levantamento que eu fazia anos atrás. É um trabalho muito pesado.

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Ainda é muito difícil contabilizar esse tipo de crime? Em geral, os levantamentos são dependentes do que sai na imprensa, não?

Os levantamentos são feitos a partir de dados da imprensa, sim. Em alguns casos, a gente descobre (o assassinato) por meio de amigos. Ainda é um crime extremamente subnotificado. Muitas vezes, a mulher trans é identificada na delegacia com o nome masculino, então há alguns empecilhos para a notificação correta. Acredito que, para melhorar isso, só com investimento em educação sobre pessoas LGBTI+. Tanto o feminicídio quanto a LGBTIfobia só vão ser combatidos se isso for debatido nas escolas . A educação ainda é o melhor caminho.

Quando você fez sua transição de gênero?

Comecei aos 12 anos a tomar hormônios, sem nenhum acompanhamento, o que é muito errado. Não tinha orientação adequada..Hoje já existem núcleos de acompanhamento de crianças e adolescentes, como no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Os pais que procuram esses núcleos são aconselhados, há acompanhamento psicológico... E, para tomar hormônios ou fazer qualquer cirurgia, é necessário completar 18 anos.

“A grande maioria das trans que chegam até mim saíram cedo de casa, abandonaram os estudos porque não conseguiam ir à escola, não contaram com a aceitação dos pais. A sociedade não nos prepara para ter filho trans.”

Indianara Siqueira
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Hoje, para as trans mais jovens, o cenário está mais fácil?

Hoje há mais acesso a informações. As minhas referências eram Roberta Close, Rogéria. Só que se tratava da espetacularização das trans. Não havia discussão sobre trans participando do sistema educacional, sendo inserida no mercado formal de trabalho. A grande maioria das trans que chegam até mim saíram cedo de casa, abandonaram os estudos porque não conseguiam ir à escola, não contaram com a aceitação dos pais. Ainda hoje, são muito poucos os pais que aceitam. A sociedade não nos prepara para ter filho trans.

Quais são as diferenças dos preconceitos sofridos por uma mulher trans e um homem trans?

Uma mulher trans vai sofrer machismo e misoginia, como qualquer outra mulher, e, só depois que descobrirem que é uma trans, ela vai sofrer transfobia. Se ela for negra, ela vai sofrer primeiro o racismo. Depois essas outras discriminações. Já no caso de um homem trans branco, ele não vai sofrer preconceito nenhum até descobrirem que ele é trans. Até a chegada da transfobia, ele vai ser tratado com os privilégios que um homem branco tem.

“O peito virou quase uma segunda genitália. É por isso que as mulheres enfrentam dificuldade até para amamentar em público. As pessoas acham que é errado ver mamilos.”

Indianara Siqueira
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Quando você se percebeu ativista pelos direitos humanos?

Saí de casa, no Paraná, aos 18 anos, e fui para Santos. Na época, a cidade paulista era conhecida como a capital mundial da Aids, e havia uma associação direta: quem era trans morria de Aids. Mas então uma irmã minha, que era hétero, morreu de Aids. Isso me deu a real dimensão do problema. Não era uma doença só de um grupo. Era algo grande. E aí comecei a querer me informar mais sobre o assunto. Parei um dia num centro de saúde para conversar... Era 1992, uma época em que quem se infectava morria muito rapidamente. E assim eu comecei a ser ativista pela prevenção e pela causa das pessoas com HIV, passei a divulgar informações. E uma coisa foi levando à outra. A partir do ativismo relacionado ao HIV/Aids, fui para a luta pelos direitos humanos em geral, a luta por educação.

Em 1996, na 4ª Conferência Municipal de Saúde de Santos, você foi uma das primeiras a propor o uso do nome social. Como o uso do nome social ajuda a compreender sua identidade?

Essa foi uma grande briga da comunidade LGBTI+. Eu me considero a mãe do nome social. Nessa conferência, propus o uso do nome social no prontuário médico, para que a mulher trans pudesse ser internada na ala feminina, por exemplo. E para que casais LGBTI+ pudessem ser considerados cônjuges oficiais no prontuário, tanto para um ter informações médicas sobre o outro em caso de doença, quanto para, em situação de morte, ter direito a pensão e a herança. Isso começou a valer naquele ano em Santos. E se espalhou depois por vários outros lugares. Também entrou depois em outras searas, como na educação: trans passaram a poder usar o nome social nas universidades, escolas.

Você foi também uma das apoiadoras das primeiras edições da Marcha das Vadias no Rio. Por que ela foi tão discriminada?

É o estigma trazido pelo nome "vadia", que escolhemos de propósito. A luta da marcha vai além de pedir direito de trabalhar fora, por exemplo: exige que as mulheres possam ter o direito de fazer o que quiserem, desde que não firam outros. Não existe nada na lei brasileira, por exemplo, que diga que a mulher com peito de fora tem que ser detida. Isso é puramente uma questão de moral. É uma falácia da nossa polícia.

Por que você acha que o tabu em relação ao peito feminino ainda se impõe tanto?

A grande questão é o mamilo. Na praia, as mulheres podem ficar com o peito quase todo de fora, mas o mamilo não pode aparecer, senão... pronto! O peito foi sexualizado. O peito virou quase uma segunda genitália. A forma feminina é criminalizada. É por isso que as mulheres enfrentam dificuldade até para amamentar em público. As pessoas acham que é errado ver mamilos.

“A morte da Marielle é muito chocante porque éramos amigas de partido e de militância”

Indianara Siqueira
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Você é fundadora da Casa Nem e militou no PSOL. Era próxima da vereadora Marielle Franco?

A morte da Marielle é muito chocante porque éramos amigas de partido e de militância. Marielle não era muito de sair na noite, então a gente se cruzava mais na militância mesmo. Eu a conheci em 2010, quando sofri ameaças de morte e tive que recorrer à Alerj. Ela era assessora parlamentar da Comissão de Direitos Humanos. Eu era uma pessoa de periferia, ela era uma mulher de favela. Uma complementava a outra. Ela sempre convidava a Casa Nem (organização fundada por Indianara em 2016) para discussões que envolviam a comunidade LGBTI+ na Alerj e praticamente obrigava os parlamentares a saber quem éramos.

No filme, sua reação à morte de Marielle parece ter sido de choque...

No dia do assassinato da Marielle, tinha recebido uma ameaça. Veio pelo whatsapp: uma travesti da Zona Oeste, onde eu moro, tinha sido assassinada pouco tempo antes, e a mensagem dizia para eu tomar cuidado porque eu seria a próxima. Estava em casa, estressada, e recebi por whatsapp a notícia de que o carro da Marielle tinha sido alvejado. Quando vi que ela tinha sido executada, entrei em desespero. Amigos começaram a me mandar mensagens dizendo que iriam me tirar da Zona Oeste. Peguei o primeiro trem, às 5h da manhã, para a Casa Nem. Fomos o primeiro grupo a chegar à Cinelândia, com faixas. Ela deixou um legado e criou proteção para outros. Quem a matou não sabia o tamanho de Marielle. Hoje ela é gigante. Depois da morte dela, instalei sete câmeras na minha casa e passei a seguir um protocolo de segurança. Sempre que eu olho os monitores, lembro que corro risco por lutar pelos direitos humanos, por tentar melhorar o mundo. Isso é muito louco.