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Brasil Celina

'Dá medo de não deixarem você ser você mesma', afirma mulher trans à espera de cirurgia

Conselho Federal de Medicina antecipa idade para procedimento cirúrgico e tratamento hormonal para readequação de gênero
Larissa Sanchez, 20 anos, vai fazer cirurgia de readequação de gênero Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Larissa Sanchez, 20 anos, vai fazer cirurgia de readequação de gênero Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

RIO — Larissa Sanchez tinha 13 anos quando procurou um psiquiatra por causa de uma depressão profunda. Na quinta consulta, já tinha a conclusão: era transexual. Ainda assim, precisou esperar muito tempo pelo tratamento com hormônios, e mais ainda pela cirurgia, que deve acontecer no meio deste ano.

— Sei que minha vida não vai mudar completamente porque vou me operar, mas é tirar uma pedra do meu caminho. Tem a ver com meus relacionamentos, mas o problema principal é comigo mesma: o incômodo com o meu corpo, uma fobia, não consigo olhar nem tocar. Vai ser um grande alívio me olhar no espelho e pensar: “Finalmente me adequei”.

Hoje uma mulher trans de 20 anos, ela ainda era criança quando começou a sofrer por não se identificar com seu gênero. “Ou eu me descobria, ou eu me matava”, conta:

— Eu sabia que era diferente desde sempre, mas meu vocabulário de criança só chegava à palavra gay. Então fui crescendo gay, mas não era apenas um menino que gostava de meninos: me sentia de fato uma menina.

Os anos de espera pelos procedimentos médicos foram passando em meio a outros desafios. Após nove meses de briga na Justiça, foi a a primeira menor de idade da América Latina a ter autorização para mudança de nome e gênero no RG, com 17 anos. Mas a sensação de inadequação com o próprio corpo não se esquece.

— O tempo é muito doloroso. É uma angústia, é uma coisa que não te pertence, você quer arrancar e quando pensa que precisa de um aval do Estado, fica desesperada. Dá medo de não deixarem você ser você mesma.

Para diminuir o sofrimento da espera de crianças, adolescentes e jovens como Larissa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu novas regras para cirurgia de afirmação de gênero , como é chamada tecnicamente, alterando a idade mínima de 21 para 18 anos para o procedimento. Para terapias hormonais, a idade mínima passou de 18 para 16 anos.

Resoluções atualizadas

A resolução, publicada no Diário Oficial da União de anteontem, é uma atualização de três resoluções anteriores do conselho. As mudanças foram discutidas durante dois anos por uma equipe de especialistas.

— A (mudança na) idade é uma questão de se adequar à maioridade civil, que é de 18 anos — afirmou o relator, o psiquiatra Leonardo Luz.

Para a endocrinologista Elaine Frade Costa, representante da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia na produção do conteúdo, a resolução traz três mudanças principais. A primeira é a inclusão de todos os procedimentos, inclusive tratamentos hormonais, na norma. A segunda é individualizar o tratamento, desobrigando a equipe de realizar dois anos de psicoterapia anterior à cirurgia, podendo ser abreviado caso o paciente seja avaliado como preparado. E, por último, o aspecto mais importante, que é a inclusão de crianças e adolescentes.

— Na criança não se faz nada, só acompanhamento com a equipe de saúde mental — diz. — Quando chega a puberdade, caso haja manifestação da incongruência de gênero, pode ser feito um bloqueio hormonal, que é reversível. E agora, a partir dos 16 anos, nos centros de pesquisa, fica permitida a terapia hormonal cruzada, que representa a transformação corporal com medicamentos para a feminização ou masculinização.

Anteriormente, as terapias hormonais estavam definidas apenas por meio de pareceres técnicos do conselho, não havia uma regulamentação.

Segundo a endocrinologista, o bloqueio interrompe o desenvolvimento das características de um ou outro gênero, mas de forma reversível, trazendo segurança porque só cerca de 40% das crianças que manifestam incongruência de gênero confirmam isso na adolescência.

— Então precisa tomar muito cuidado com esse diagnóstico para que não haja arrependimento lá na frente. No nosso serviço, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, o índice de arrependimento é zero — afirma. Ali, já foram atendidos mais de 500 pacientes e 250 estão em acompanhamento.

A demanda é tanta que o cadastramento de pacientes novos ficou fechado por cinco anos.Foi reaberto em 2019 por apenas quatro meses, quando 120 pacientes se cadastraram para começar o processo. Com tanta gente, foi necessário fechar novamente.

Para o psiquiatra Alexandre Saadeh, que participou da comissão e coordena o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da USP, a diminuição da idade para tratamentos é fundamental.

— Para alguns, parece que é tudo bobagem, querem aparecer, mas na verdade é um grande sofrimento. É você ter um corpo com o qual não se identifica. O que as crianças e adolescentes ganham com o acompanhamento é fenomenal.

Em relação às cirurgias, a nova resolução retira o caráter experimental de procedimentos como mastectomia bilateral (remoção da mama) e histerectomia (remoção do útero), mas mantém como experimental a neofaloplastia (que cria um pênis a partir de pele de outras partes do corpo) — essa, portanto, continua sendo feita apenas em centros de pesquisa.

Atualmente, apenas cinco hospitais públicos no país são habilitados para fazer cirurgias em transgêneros. Esses, que também são centros de pesquisa, já passam a seguir as novas normas. Grandes hospitais particulares podem vir a abrir centros de pesquisa (que exigem comissões de ética e outros requisitos) e prestar os serviços.

— Seria muito importante aproveitar essa revisão dos critérios, idade e acesso para levantar a discussão para a falta de investimento para os procedimentos previstos e limitação na quantidade de hospitais que realizam as cirurgias, apenas cinco e 12 ambulatórios, que é muito insuficiente. Temos avanço na resolução, temos avanço na OMS, mas em termos de política pública aqui no Brasil ficamos preocupados em como garantir que a população acesse de fato esses procedimentos previstos — afirma a Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Para os hospitais vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), as regras só passam a valer após a avaliação do Ministério da Saúde. A representante da pasta, Maria Inez Gadelha, disse ao G1 que as novas normas serão analisadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Não há prazo definido para que isso ocorra.

— A resolução do CFM não é automática para o SUS. O SUS vai ver se se adequará ou não a ela — afirma Gadelha. — Outros órgãos e ministérios têm que ser ouvidos e envolvidos. Há um aspecto social muito forte nisso.