Brasil Celina Sociedade

Mais de 1,2 milhão de mulheres sofreram violência no Brasil entre 2010 e 2017

Dados foram divulgados na segunda-feira pela recém-lançada plataforma EVA, do Instituto Igarapé; aumento das ocorrências foi de 297% para brancas e 409% para negras
Plataforma Eva, do Instituto Igarapé, é um banco de dados sobre violência contra a mulher no Brasil, México e Colômbia Foto: Reprodução
Plataforma Eva, do Instituto Igarapé, é um banco de dados sobre violência contra a mulher no Brasil, México e Colômbia Foto: Reprodução

RIO — Carolina (nome fictício), hoje com 40 anos, ficou casada por mais de uma década com um homem que, da porta para fora, parecia acima de qualquer suspeita. Dentro de casa, proibiu a mulher de trabalhar e de estudar e a afastou dos amigos. Quando ela insistiu em continuar a carreira, começaram os insultos.

— Ele me chamava de vagabunda, me xingava, dizia que ia me deixar sem nada. No começo, fazia isso só entre nós, depois começou a me agredir na frente da minha filha, da pessoa que trabalhava em casa. Ele foi ficando mais e mais agressivo, até o dia em que me agrediu. Minha filha ( então com 6 anos ), que estava dormindo, acordou, me tranquei com ela no quarto e só saí para ir à delegacia.

Conheça: Plataforma 'Celina' lança banco de fontes público que reúne exclusivamente mulheres

Carolina fez exame de corpo de delito e conseguiu medida protetiva, mas ainda vive sob ameaças.

— Fiquei marcada, dolorida, mas o pior foi o emocional. Eu já vivia agressões psicológicas há dois anos. Era enlouquecedor, um terror constante.

A dor de Carolina é um exemplo da violência praticada diariamente contra a mulher — e, na maior parte das vezes, por alguém próximo à vítima.

Leia mais: Assédio, cantadas agressivas, passadas de mão: a cada 24 horas duas mulheres são vítimas de crime sexual no Rio

Para registrar esse e outros tipos de agressão e contribuir para a implementação de políticas públicas de combate ao crime contra a mulher, foi lançada ontem, Dia Internacional para Eliminação da Violência contra Mulheres , a plataforma EVA (Evidências sobre Violências e Alternativas para Mulheres e Meninas), do Instituto Igarapé .

De acordo com os dados compilados pelo think tank, ao menos 1,23 milhão de mulheres foram atendidas no sistema de saúde brasileiro vítimas de violência entre 2010 e 2017. E o agressor é, em 90% dos casos, uma pessoa próxima da vítima — 36% das vezes, o próprio parceiro.

Nesse mesmo período, as notificações de violência contra mulheres brancas aumentaram 297%. No caso das mulheres negras, o cenário é ainda mais grave: 409%.

Agressões a mulheres, Segundo a plataforma EVA
1,23 milhão
90%
36%
Por
conhecidos
Por
parceiros
de mulheres vítimas
de violência
entre 2010 e 2017
17 mil
foram mortas entre 2015 e 2018
Aumento da violência entre 2010 e 2017
297%
409%
contra mulheres
brancas
contra mulheres
negras
Feminicídio (casos)
Homicídio doloso
735
702
3.353
3.111
3.026
2.934
441
242
2015
2016
2017
2018
2015
2016
2017
2018
Lesão corporal
Lesão corporal dolosa seguida de morte
93
209.553
203.161
194.072
78
187.555
74
74
2015
2016
2017
2018
2015
2016
2017
2018
Estupro
Violência física por unidade da Federação
(em 2018, por 100 mil/hab)
18.196
Amapá
724
16.816
Mato Grosso
720
14.496
13.058
Rondônia
698
Rio Grande do Sul
617
Distrito Federal
594,3
2015
2016
2017
2018
Agressão por faixa etária (2017)
Agressão por etnia (2017)
0-14 anos
15-29 anos
45-64 anos
Branca
Parda
Preta
17,8%
38,9%
12,3%
40,3%
38,9%
8,9%
30-44 anos
65+ anos
Indígena
Não especificado
28,1%
2,9%
1,6%
10,3%
*Nem todos os estados brasileiros ofereceram informações sobre todos os tipos de violência
**Dados oficiais da Saúde e Segurança Pública
Agressões a mulheres,
Segundo a plataforma EVA
1,23 milhão
de mulheres vítimas
de violência
entre 2010 e 2017
Por
conhecidos
Por
parceiros
90%
36%
17 mil
foram mortas entre 2015 e 2018
Aumento da violência entre
2010 e 2017
297%
409%
contra mulheres
brancas
contra mulheres
negras
Feminicídio (casos)
735
702
441
242
2015
2016
2017
2018
Homicídio doloso
3.353
3.111
3.026
2.934
2015
2016
2017
2018
Lesão corporal dolosa seguida de morte
93
78
74
74
2015
2016
2017
2018
Lesão corporal
209.553
203.161
194.072
187.555
2015
2016
2017
2018
Estupro
18.196
16.816
14.496
13.058
2015
2016
2017
2018
Violência física por unidade da Federação
(em 2018, por 100 mil/hab)
Amapá
724
Mato Grosso
720
Rondônia
698
Rio Grande do Sul
617
Distrito Federal
594,3
Agressão por faixa etária (2017)
0-14 anos
15-29 anos
45-64 anos
17,8%
38,9%
12,3%
30-44 anos
65+ anos
28,1%
2,9%
Agressão por etnia (2017)
Branca
Parda
Preta
40,3%
38,9%
8,9%
Indígena
Não especificado
1,6%
10,3%
*Nem todos os estados brasileiros ofereceram informações
sobre todos os tipos de violência
**Dados oficiais da Saúde e Segurança Pública

Não é possível afirmar se o crescimento reflete com precisão o aumento da violência ou se também é resultado da maior visibilidade dada ao tema.

— Houve melhora nas notificações. O que tem acontecido é um despertar para essas questões. As pessoas estão desnaturalizando violências que antigamente se consideravam normais — afirma a pesquisadora sênior do Instituto Igarapé, Renata Avelar Gianinni.

O perfil dos crimes muda quando se faz o recorte por etnia. No Rio de Janeiro, 64% das vítimas de feminicídio eram negras, assim como 62% das vítimas de homicídios dolosos, 58% das vítimas de tentativas de homicídio, 57% de quem sofreu tentativa de estupro e 56% das que foram estupradas. Já as brancas foram 55% das vítimas de difamação, 54% das vítimas de ato obsceno, 54% de quem sofreu constrangimento ilegal e 53% das vítimas de assédio sexual.

A pesquisadora Deise Benedito, especialista em gênero e relações raciais, destaca que, pelo “processo histórico com que se construiu o Brasil, não podemos deixar de levar em consideração a violência contra as mulheres indígenas, vítimas de inúmeras violações”. E, hoje, o fato de a maioria das vítimas ser de mulheres negras, “pobres, responsáveis pela manutenção da casa e dos filhos”.

— Para essas mulheres, tudo é negado. O corpo das mulheres negras secularmente foi algo a ser violado, desprovido de qualquer respeito. — afirma Benedito. — Os dados oficiais apontam para um problema de saúde pública gravíssimo, e as informações e a divulgação desses dados são de fundamental importância para que providências sérias sejam tomadas.

As mulheres são a maioria das vítimas de todos os tipos de violência: física (73%), patrimonial (78%), psicológica (83%) e sexual (88%). Em 2017, a física foi a principal forma de violência registrada no sistema de saúde contra mulheres, com 59% das ocorrências, seguida da psicológica (26%), sexual (14%) e patrimonial (1%).

Na questão da violência sexual, um dado que chama a atenção é o de que, quando as vítimas são mulheres adultas, cerca de metade dos crimes é cometida por pessoas conhecidas delas. Em meninas de até 14 anos, que são as maiores vítimas desse tipo de crime (56%), os perpetuadores são, em 65% dos casos, pessoas com quem elas tinham alguma ligação; 30% das vezes, um parente.

A plataforma EVA é um banco de dados que reúne informações sobre violência contra as mulheres não só no Brasil, mas também no México e na Colômbia. Juntos, os três países concentram 65% dos assassinatos de mulheres em toda a América Latina, considerados os números absolutos. No Brasil ocorrem 37% dos casos de feminicídio . A intenção do instituto é expandir sua atuação para todos os países da região.

Deserto de dados

O projeto esbarra, porém, no que as pesquisadoras chamam de “deserto de dados”. Além do já conhecido problema da subnotificação dos casos de violência, ainda falta uma base equivalente com dados oficiais de todos os estados.

Pelo menos dois estados brasileiros não disponibilizaram nenhuma informação, seja das notificações de Saúde ou das ocorrências da Segurança Pública, para a plataforma: Piauí e Goiás. Já o Amazonas enviou dados apenas da capital, Manaus. Os dados sobre etnia, por exemplo, foram liberados por apenas quatro estados.

— O principal achado da plataforma é a falta de dados. São muitas lacunas. E sabemos que é muito difícil fazer política pública sem dados.

A promotora de Justiça especialista em direitos das mulheres Gabriela Manssur afirma que ainda há uma enorme subnotificação. Segundo ela, mulheres de classe média e média alta em situações de violência se calam por medo, frustração e falta de apoio. Já as mulheres negras não têm oportunidade de inclusão e acesso ao sistema de Justiça como as brancas. Além disso, “há uma descrença das mulheres no sistema de Justiça”.

Apesar disso, Gabriela Manssur afirma que houve queda na subnotificação, de 65% na época da implantação da Lei Maria da Penha para em torno de 40% atualmente.

— O Brasil é um país que culturalmente não se preocupa com dados estatísticos. Eu mesma não me preocupava e, quando pleiteava políticas públicas, não tinha como demonstrar a necessidade delas, foi a partir daí que comecei a fazer micropesquisas para mostrar a realidade e pleitear as políticas necessárias — afirma a promotora. — A falta de dados atrapalha, mas o que me preocupa mais é o aumento da violência contra a mulher. Não podemos transformar a vida das mulheres em números. Precisamos transformar a possibilidade de elas viverem num compromisso de todo o sistema de Justiça e da sociedade.