Brasil

Conheça Uýra Sodoma, a drag queen comprometida com a Floresta Amazônica

O biólogo Emerson Munduruku se transforma para ensinar sobre conservação ambiental

Emerson Munduruku, o ativista que se caracteriza com Uýra Sodoma para dar aulas sobre meio ambiente
Foto: AFP / RICARDO OLIVEIRA
Emerson Munduruku, o ativista que se caracteriza com Uýra Sodoma para dar aulas sobre meio ambiente Foto: AFP / RICARDO OLIVEIRA

MANAUS — Descendente de indígenas, Emerson Munduruku nasceu na Amazônia brasileira, e os laços que o conectam com a floresta são tantos e tão intrincados que, em seu momento de maior transformação, o biólogo criou Uýra Sodoma, seu alterego drag queen, para ensinar sobre conservação ambiental.

Com uma saia até o tornozelo, quase sempre com o torso nu, pintada de amarelo, verde, ou vermelho, e usando uma coroa de folhas, ou flores, Uýra utiliza em sua proposta estética sementes, ramagens e outros materiais naturais que colhe antes de sua metamorfose — um processo que demorar cerca de duas horas.

Em evolução contínua, o resultado nunca é igual. Quase como uma extensão da terra, ou como um animal camuflado na floresta, ensina jovens de comunidades amazônicas a se conectarem com a natureza e a como protegê-la.

— Em uma época de mudanças, eu me perguntei como queria trabalhar com a conservação ambiental. Antes eu fazia isso apenas da perspectiva científica, mas percebi que também era importante a perspectiva social. Até então, Uýra não tinha cara, não tinha nome — comentou Emerson, de 27 anos, em uma entrevista por telefone com a AFP, em Manaus.

Uýra nasceu como resposta à violência física, aos questionamentos pessoais e à convulsão nacional de um país que, em 2016, debatia-se com uma crise política que resultou na destituição da presidente Dilma Rousseff, acusada de maquiar as contas públicas.

— O Brasil estava vivendo um golpe. Houve muitas manifestações artísticas em toda Manaus, e eu me perguntava como acrescentar outras perspectivas ao meu trabalho. Era decisivo que Uýra existisse — explicou Emerson, com tom de voz sempre suave e sorriso constante.

Até então, o descendente do povo indígena Munduruku estudava anfíbios e répteis, quase sempre em espaços científicos.

— Passei seis anos da minha vida trabalhando com sapos e lagartos (...) e um dia me agrediram ao sair de um bar por usar batom e delineador nos olhos. Ali senti na pele a violência. Comecei a me aproximar das mulheres, dos travestis, a entender mais sobre racismo, sobre LGBT-fobia. Eu me conectei com a cidade e com as pessoas — contou.

Ele esclarece, porém, que não vê sua evolução como consequência da agressão sofrida.

— Nossas histórias costumam ser contadas de uma perspectiva de dor e uma metamorfose imediata. É importante, mas nossas histórias são muito mais complexas, parece que há uma dependência da dor para nos mudar — afirmou. — Essas mudanças todas impulsionaram a existência de Uýra, e Uýra impulsionou minha vida. Ela me faz feliz, me fez lidar melhor com meu corpo e as pessoas e todos os meus desejos e angústias — explicou Emerson, que não acredita em gêneros. — Tanto faz, masculino, feminino, só preciso que me tratem com respeito.


“Tanto faz, masculino, feminino, só preciso que me tratem com respeito”, diz Emerson
Foto: AFP / RICARDO OLIVEIRA
“Tanto faz, masculino, feminino, só preciso que me tratem com respeito”, diz Emerson Foto: AFP / RICARDO OLIVEIRA

Inspiração criativa

Emerson nasceu em uma pequena comunidade com menos de 40.000 habitantes no interior de Santarém, Pará. Aos seis anos, mudou-se para Manaus com seus pais e sua irmã mais velha. Desde então, vivem em uma ocupação na periferia da capital, entrecortada por dezenas de riachos e afluentes do Rio Negro.

Filho de empregada doméstica e de um vendedor, Emerson estudou graças ao sistema público. Apesar de pensar em fazer Letras na faculdade, um professor o incentivou a seguir Biologia, carreira que cursou fazendo trabalhos temporários e que prosseguiu na pós-graduação em Ecologia.

Agora, viaja com frequência para pequenas comunidades fluviais para educar sobre conservação ambiental por meio da arte. Um trabalho no qual Uýra tem um papel fundamental.

— Um pilar do projeto é usar a floresta como inspiração criativa e como ferramenta. Isso conecta muito mais as pessoas com a floresta, que é seu contexto — explica.


Nas comunidades afastadas, crianças se aproximam com medo e curiosidade
Foto: AFP / RICARDO OLIVEIRA
Nas comunidades afastadas, crianças se aproximam com medo e curiosidade Foto: AFP / RICARDO OLIVEIRA

Encanto ou medo

— Uýra sempre é recebida com reações de encanto, ou de medo (...) Na cidade, quem se encanta se aproxima para conversar; mas, nas comunidades menores, inclusive quem sente medo, se aproxima. Não há distâncias, as interações são mais espontâneas, inclusive as crianças, curiosas, se aproximam", relata.

A respeito das eleições presidenciais de outubro, Emerson teme que não exista um debate real dos problemas nacionais, entre eles o tema ambiental.

— Milhares de pessoas buscam soluções desesperadas, imediatas, mágicas, para problemas que são sistêmicos — lamenta. — Vivemos um desmonte apelidado de reforma em todos os campos da sociedade brasileira, desmonte de articulações positivas, de direitos conquistados. A gente vive uma época de grave violência, terras e reservas indígenas que estão ameaçadas de invasão por acordos empresariais — alerta, mudando o tom de voz.

Indagado sobre o futuro, Emerson sorri de novo e diz:

— Embora o cenário de caos pareça só aumentar, vejo muito verde e esperança.