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Coronavírus: 'Cientistas brasileiros têm produzido conhecimento crucial', diz presidente da Academia Brasileira de Ciências

Com o orçamento destinado à pesquisa equivalente a um terço do praticado há 10 anos, o físico Luiz Davidovich alerta que sem ciência o Brasil não terá futuro
Físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
Físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

RIO - Está na ciência a única esperança da Humanidade de produzir armas para enfrentar o coronavírus , um inimigo invisível contra o qual bombas são fogos de artifício. Mas, mutilada por cortes de bolsas de pesquisa e esmagada por um orçamento equivalente a um terço do praticado há 10 anos , a ciência no Brasil está na UTI . Ainda assim, cientistas brasileiros estão na linha de frente do combate e têm produzido conhecimento crucial para o enfrentamento da pandemia, afirma o físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Ele, porém, alerta que sem ciência o Brasil não terá futuro .

Como a ciência no Brasil tem colaborado no combate da Covid 19?

A ciência, em diversos países, incluindo o Brasil, está desvendando o coronavírus , como ele entra no organismo humano e destrói nossas células. Descobrimos como diagnosticar quem está infectado, as formas de contágio e as estratégias para desacelerar a transmissão na população, testadas com êxito em vários países e que têm como pontos fundamentais o distanciamento social e a testagem em massa . Está em progresso a testagem de diversos medicamentos . Temos aqui no país uma colaboração interdisciplinar, que reúne profissionais de saúde, biólogos, matemáticos e físicos voltados para simulações que permite previsões sobre a evolução da epidemia, engenheiros que constroem novos dispositivos para atendimento hospitalar, cientistas sociais que avaliam qual a melhor forma de proteger os grupos socialmente mais vulneráveis. Uma rede científica de solidariedade, em defesa da vida.

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O Brasil reduziu o orçamento para a ciência. Quão drásticos foram os cortes?

Considerando a correção pela inflação, os recursos para pesquisa no MCTIC correspondem, atualmente, a cerca de um terço do orçamento de 2010. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o FNDCT, tem contingenciada cerca de 90% da verba destinada à pesquisa e à inovação. Esses recursos, desviados para quitar a dívida pública, vêm de impostos cobrados às empresas, para serem aplicados em pesquisas relacionadas aos interesses dessas empresas. O contingenciamento é um desvio de finalidade.

E o que isso nos traz de atraso?

Os cortes impediram a renovação de laboratórios, levaram jovens pesquisadores a abandonar o país e desestimularam estudantes a seguir uma carreira de pesquisa. A recente redistribuição de bolsas da CAPES perturba a pós-graduação e a formação de profissionais. Isso dificulta o progresso da ciência no Brasil, pois os equipamentos de pesquisa estão obsoletos e os recursos humanos, ameaçados. Sofre também a inovação. O Brasil é a oitava economia do mundo, mas ocupava o 66º lugar no índice global de inovação, atrás do Chile e da Costa Rica. Em 2011, o Brasil ocupava o 47° lugar. Regredimos! Dependemos de outros países para adquirir os insumos para medicamentos, logo o Brasil que possui 20% da biodiversidade mundial.

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O governo federal fez o maior corte de bolsas de pós-graduação da história, mesmo antes da Covid 19 explodir. Qual o cenário atual?

A Portaria 34, publicada pela CAPES em 9 de março, mudou radicalmente a metodologia de distribuição de bolsas de pós-graduação, afetando estudantes matriculados. E praticamente manteve o total de bolsas de 2019, que já era menor que o de 2018.  A data de publicação contribuiu para a desorganização da pós-graduação, com sérios prejuízos para estudantes selecionados, com promessa de bolsa, muitas vezes provenientes de outros estados.

Qual o impacto para combate da Covid, a recuperação da economia e o futuro do país?

Isso desestimula a formação de profissionais para enfrentar pandemias como a do coronavirus ou desastre naturais, como o derramamento de óleo no litoral brasileiro, ou para agregar valor aos recursos minerais e à biodiversidade, enfim para construir um futuro sustentável para o país. Instituições que estão entre as melhores do país tiveram cortes em torno de 50% das bolsas de doutorado!

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O senhor mencionou que há erros na matemática dos cortes. Quais são?

A “fórmula” utilizada pela CAPES considera, para a distribuição de bolsas, a taxa média de titulação da instituição, a qualidade do programa e o índice de desenvolvimento regional (IDHM). O problema está no modo como são combinados esses fatores. Não é propriamente um problema de matemática, mas de falta de simulações e de discussão com a comunidade. Por exemplo, em uma cidade de IDHM alto, um curso com nota 6 que formou 36 alunos de doutorado em média por ano tem direito a 57 cotas de bolsa, enquanto um programa nota 7 que formou em média 35 alunos por ano tem direto a 32 cotas. Uma diferença de apenas uma titulação leva a uma vantagem de 23 bolsas para o programa nota 6!

Qual o papel de mestrandos e doutorandos no trabalho dos laboratórios?

Estudantes de mestrado e doutorado são essenciais, são eles que fazem andar os experimentos ou o trabalho teórico, trazendo novas ideias, be permitindo ao orientador supervisionar diversos experimentos simultaneamente.

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Dependemos de testes e uma série de outros insumos importados contra a Covid 19. O quão vulneráveis somos?

Sofremos as consequências do descaso de sucessivos governos em relação à ciência e à inovação. Temos que importar insumos para reagentes usados em testagens, máscaras e kits de testagem rápida, cujo preço aumenta e a disponibilidade diminui à medida em que avança a epidemia no mundo, e também diante do enorme poder de compra dos EUA, que passaram a ser fregueses preferenciais da China.

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Que outros fatores que contribuem para nossa vulnerabilidade?

Ela também associada a dois fatores importantes. O primeiro são as condições precárias de habitação, saúde e saneamento de uma parcela importante da população brasileira. O segundo é o descuido com o meio ambiente, evidenciado pelo desmatamento da Amazônia e do Cerrado, que propicia o aparecimento de novos vírus. Espero que a experiência dessa crise motive um novo modelo de desenvolvimento para nosso país, que valorize a ciência, a inovação e o meio ambiente.