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Sequelas da Covid-19: complicações em vários órgãos indicam uma doença sistêmica

Especialistas investigam os impactos definitivos que podem ser gerados em diferentes áreas do corpo pela doença
Tratada como doença respiratória em suas primeiras semanas de observação, a Covid-19 se apresentou como uma doença sistêmica Foto: Editoria de arte
Tratada como doença respiratória em suas primeiras semanas de observação, a Covid-19 se apresentou como uma doença sistêmica Foto: Editoria de arte

RIO - Tratada como doença respiratória em suas primeiras semanas de observação, a Covid-19 se apresentou, pouco a pouco, como uma doença sistêmica , trazendo complicações para diferentes órgãos do corpo. A reportagem do GLOBO ouviu especialistas de diferentes áreas da medicina para saber como a doença, em seus estágios graves de evolução, vem agindo em diferentes sistemas e o que se pode esperar de sequelas definitivas para pacientes recuperados da doença. Todos afirmam: a Covid-19 ainda está sendo estudada, e a cada dia é uma descoberta.

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A Covid-19 afeta outros órgãos além do pulmão?

Efeitos Covid-19 Foto: Editoria de arte
Efeitos Covid-19 Foto: Editoria de arte


A Covid-19 é uma doença sistêmica. Passamos algumas semanas tratando-a como uma doença fundamentalmente respiratória, ligada a uma pneumonia viral, mas logo em seguida se viu o quanto a doença comprometia outros sistemas do corpo. A observação mostrou que havia, junto com ela, um comprometimento vascular e cardiovascular, levando com muita frequência à insuficiência renal, e também um comprometimento na coagulabilidade do sangue, caracterizando-se por um fenômeno de trombogênese, com tendência a trombose e a embolia. Além disso, foi percebida uma série de manifestações de natureza neurológica, como a perda do olfato e a perda do paladar. O fenômeno inflamatório é de tal ordem que pode causar até encefalite, que seria a inflamação no cérebro. Isto é menos comum, porque o sistema nervoso central humano é muito protegido, mas alguns pacientes evoluíram para este quadro.

A Covid-19 pode deixar sequelas definitivas no funcionamento destes sistemas?

Efeitos da Covid-19 Foto: Arquivo de arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Arquivo de arte

Ainda não há um "recuo histórico" e trabalhos suficientes publicados para definir as sequelas possíveis da Covid-19. A  infecção pelo virus Sars-CoV-2 é bastante nova e ainda desconhecida. Estamos aprendendo a cada dia, com dados novos que surgem muito rápido. Mas se trabalha com a possibilidade da ocorrência de sequelas em estudos de diferentes áreas. Estima-se que 81% das pessoas vão ter a forma leve da doença, sem indicação de danos permanentes aos órgãos. Já cerca de 19% vão ter a forma grave da Covid-19 e, desses, 5% podem apresentar um quadro bem crítico, evoluindo com choque e disfunção de múltiplos órgãos. Dependendo do tipo de dano causado, o paciente pode desenvolver disfunções definitivas.

As sequelas se dariam apenas em pacientes que tiveram seus quadros agravados e passaram um bom tempo na UTI?

Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte

No geral, sim. As sequelas, se acontecerem, provavelmente serão naqueles que tiveram a forma grave da doença com comprometimento de múltiplos órgãos.

Quais seriam as sequelas no pulmão após a recuperação da doença?

Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte

Quando o tempo de internação é muito extenso e o paciente permanece um longo período em ventilação mecânica, muitas vezes é exigido que ele passe por um processo gradual até que volte às suas atividades habituais, incluindo a fisioterapia pulmonar para que o órgão recupere suas funções. Mas não se sabe ainda se pacientes que evoluíram com um grave comprometimento do pulmão, de até 70 ou 80% do órgão, terá sequelas definitivas. Em caso afirmativo, seriam sequelas do ponto de vista funcional, de perda em capacidade respiratória. Sequelas tanto de natureza obstrutiva (como um enfisema ou uma bronquite crônica, levando à necessidade de medicamentos por toda a vida) como de natureza restritiva (como a fibrose de áreas nobres do pulmão).

Como a Covid-19 pode afetar o coração?


Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte

Existem várias hipóteses. Por mecanismos diretos, com o vírus entrando nas células do coração e causando inflamação, ou por mecanismos indiretos, através de uma desregulação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (eixo endócrino que controla o volume de líquido extracelular e a pressão arterial) que pode afetar o sistema cardiovascular de várias maneiras. O coração também pode por ser afetado pela baixa concentração de oxigênio gerada pela insuficiência respiratória, pela tempestade de citocinas (substâncias que podem deprimir a função cardíaca) e por isquemia devido à formação de coágulos na microcirculação. Há, também, relatos de infarto porque a doença predispõe à ruptura de placas e à síndrome chamada de Takotsubo (coração partido), devido a uma descarga de hormônios vasoativos.

A Covid-19 pode causar lesões cardíacas mesmo em indivíduos sem doenças coronárias antes da doença?

Efeitos da Covid-19 Foto: Reprodução
Efeitos da Covid-19 Foto: Reprodução

Sim. Em casos críticos, o coração é um órgão frequentemente afetado e aí, dependendo do tipo de lesão, se isquêmica ou inflamatória, o paciente pode desenvolver insuficiência cardíaca.

Que tipo de complicações a Covid-19 pode trazer para quem tem doenças cardiovasculares preexistentes?

Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte

Pacientes com doenças cardiovasculares preexistentes, como hipertensão arterial sistêmica, miocardiopatia e ateriosclerose, estão sob maior risco. O vírus tem provocado uma inflamação do endotélio dos vasos, que é a camada de células que recobrem a parte interna dos vasos, levando a uma desregulação dos neurormônios. Pacientes com doenças cardíacas e hipertensão já têm essa desregulação e aí seriam mais predispostos. Outro problema é que qualquer quadro infeccioso demanda mais do coração e, então, um paciente com a função já comprometida é mais susceptível à piora. Existe ainda a teoria de que a porta de entrada do vírus é a enzima conversora da angiotensina 2, que está presente nos pulmões e tem ação protetora. Essa enzima está presente em maiores concentrações em quem tem doenças cardiovasculares. Talvez por isso esses doentes sejam mais suscetíveis às formas mais graves de SARS-COV-2.

Como o coronavírus está relacionado ao surgimento de fenômenos como trombose e embolia?

Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de Arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de Arte

Estamos elucidando esse mecanismo, mas a interação entre infecções graves virais e tromboses é conhecida. De uma forma simples, o vírus ataca vários tecidos, particularmente os pulmões. Existe em alguns pacientes uma reação inflamatória anormal exacerbada, com a tempestade de citocinas, que acabam ativando a cascata de coagulação. Trombos pulmonares em Covid-19 provavelmente se desenvolvem como consequência de lesão direta dos vasos sanguíneos pela infecção viral e pela inflamação grave. Esses eventos ativam ainda mais os mecanismos envolvidos na formação dos coágulos, piorando os quadros de trombose. Como tratar essas complicações graves é o que estamos aprendendo. O importante é não piorarmos essa coagulopatia.

Quais os protocolos adotados com pacientes de Covid-19 em relação ao tratamento com anticoagulantes, mesmo após a alta?

Os que vínhamos usando antes da pandemia, validados por estudos clínicos sérios e descritos em guidelines internacionais. Protocolos novos inventados não ajudam em nada, pois não sabemos as consequências de aumentar a dose de anticoagulantes em uma doença tão desconhecida. Estamos iniciando estudos agora com doses diferentes de anticoagulantes para a Covid-19, mas ainda não há resposta. É em situações de catástrofe que mais precisamos de dados confiáveis, e esses dados só vêm por meio de estudos prospectivos, controlados e randomizados bem feitos.

Quais as sequelas do ponto de vista cardiovascular que pacientes recuperados da Covid-19 podem ter?

Alguns pacientes desenvolvem miocardiopatias; outros, sequelas decorrentes de AVC isquêmico; outros, hipertensão pulmonar secundária à trombose e embolia pulmonar desencadeada pela infecção. Outros desenvolvem fibrose pulmonar secundária à infecção. Já vimos três casos de tromboses arteriais associadas à Covid-19. Felizmente, muitos pacientes saem sem complicações graves.

Como a Covid-19 pode afetar os rins?

Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de Arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de Arte

Os rins são órgãos frequentemente acometidos diretamente pela infecção do coronavírus, especialmente nos casos moderados e graves da doença. A presença de proteína e hemácias (sangue) em quantidade um pouco maior que o normal ocorre em quase metade destes casos. Em uma porcentagem muito pequena, a infecção renal pode levar a uma pequena redução da função dos rins. Nos casos graves, a falência aguda dos rins é bastante comum, ocorrendo em 50 a 80% dos casos, devido à agressão de múltiplos órgãos, com a queda da pressão arterial, inflamação, alterações na coagulação do sangue e o uso de remédios que agridem os rins. A terapia por hemodiálise é frequente e precocemente utilizada, nestes casos.

Tal comprometimento pode gerar alguma sequela na função renal do paciente, após sua cura?

Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de Arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de Arte

A resposta a esta pergunta não é, ainda, muito clara, mas de maneira geral casos de falência renal aguda grave, de diferentes causas, podem deixar cicatrizes renais e causar redução crônica da função renal.

Como a Covid-19 pode afetar o sistema neurológico?

Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte
Efeitos da Covid-19 Foto: Editoria de arte

Estudos mostram que a doença tem tido algumas implicações neurológicas, agindo no Sistema Nervoso Central (SNC), no periférico (SNP) e na fibra muscular. Entre os sintomas da infecção já detectados, estão a perda de olfato (anosmia) e a do paladar (ageusia), mostrando que o vírus atuou sobre nervos cranianos. Em casos mais raros, relatou-se a invasão do cérebro pelo vírus, em uma encefalite. É cedo para dizer se as consequências destas implicações acontecerão a longo prazo ou definitivamente, mas o que tudo indica é que o prolongamento dos cuidados intensivos pode ocasionar miopatia (doença da fibra muscular) e outras doenças envolvendo o sistema nervoso.

Especialistas ouvidos: Margareth Dalcolmo, pneumologista, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e colunista do GLOBO; Eduardo Ramacciotti, cirurgião vascular, professor de Trombose e Hemostasia no Loyola University Medical Center, em Chicago, e professor de Cirurgia Vascular na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; Audes Feitosa, cardiologista da Universidade de Pernambuco (UPE) e presidente do Departamento de Hipertensão Arterial da Sociedade Brasileira de Cardiologia; Simone Brandão, médica nuclear e cardiologista e professora do Departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); e Vinicius Delfino, diretor científico da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN).