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'Temos filas na Caixa e corpos em valas comuns’, diz médico da linha de frente contra a Covid-19

Infectologista Rafael Galliez defende redução extrema da mobilidade para amenizar situação ‘desesperadora’ da rede pública de saúde
Coveiros trabalham para enterrar vítimas confirmadas e suspeitas do novo coronavírus, em Manaus Foto: MICHAEL DANTAS / AFP
Coveiros trabalham para enterrar vítimas confirmadas e suspeitas do novo coronavírus, em Manaus Foto: MICHAEL DANTAS / AFP

RIO - Médico infectologista e cientista, Rafael Galliez personifica a figura do profissional de saúde na linha de frente da guerra contra a Covid-19 . Como professor de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da UFRJ e especialista em vigilância epidemiológica, diz que o coronavírus está tão descontrolado que o Brasil passou a fazer uma “epidemiologia de corpos”. A guerra, na linguagem bélica que se tornou a regra na pandemia , Galliez enfrenta todos os dias nas trincheiras em que se transformaram as UTIs da cidade do Rio.

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Em que ponto estamos?

Naquele em que não é preciso contrair o coronavírus para morrer em decorrência da Covid-19. O colapso dos hospitais significa a restrição do atendimento. Seja para uma pessoa com insuficiência respiratória devido à Covid-19 ou um infartado sem o vírus.

Como chegamos a isso?

A pandemia pegou o Brasil no pior momento. O coronavírus encontrou o SUS desestruturado, principalmente no estado do Rio. Sou infectologista, já vi doenças terríveis, como as epidemias de dengue, H1N1, zika e febre amarela. Na recente epidemia desta última, tivemos casos gravíssimos de hemorragias associadas, condição que deixava toda a UTI com cheiro de sangue. Mas nada é como agora.

Rafael Galliez personifica a figura do profissional de saúde na linha de frente da guerra contra a Covid-19. Foto: Arquivo pessoal
Rafael Galliez personifica a figura do profissional de saúde na linha de frente da guerra contra a Covid-19. Foto: Arquivo pessoal

Por que as pessoas não aderem ao distanciamento social?

Criamos a falsa dicotomia entre manter economia viva e manter vivas as pessoas. No momento em que os casos só aumentam, temos pressões intensas para sair do isolamento, já que optamos por não mostrar a intensidade das mortes de forma gráfica, fazendo com que as pessoas não tenham a real dimensão do problema. Muita gente se recusa a entender que doentes se acumulam nos hospitais e não há profissionais e estrutura para atender a todos.

Qual a dimensão da carência?

O problema não é só não ter um respirador e um equipamento de hemodiálise. Não há mais equipes de saúde suficientes e menos ainda médicos que saibam usar esses equipamentos. Não temos técnicos de hemodiálise suficientes.

O problema é na rede pública?

A situação no SUS é desesperadora. Mas mesmo os que podem pagar não terão facilidade no acesso ao tratamento, pois o sistema já está saturado. E os leitos estão com a mesma limitação, fruto da diminuição dos profissionais, uma vez que estamos nos infectando. Todas essas unidades que querem se expandir concorrem pelo mesmo número de profissionais com o SUS.

Como está a situação dos profissionais de saúde?

É como numa guerra. Não temos medo da trincheira, mas precisamos ser tratados com dignidade. E o Brasil não tem tratado seus profissionais de saúde com dignidade. Há os que passam horas para ir e vir dos hospitais, expondo-se em pontos de ônibus. O salário de um técnico de enfermagem, tipo de profissional mais exposto ao vírus, não é digno. Precisamos de uma autoridade regional do SUS que saiba dizer com precisão de quantos profissionais, leitos e equipamentos dispomos em tempo real, de forma integrada. A sensação é de uma batalha sem general (sem controle centralizado e organizado), sem fuzis (ventiladores e outros equipamentos) e sem soldados (profissionais de saúde).

E qual é o quadro nos hospitais?

Perdi nesta semana um amigo médico de 41 anos. Era um infectologista excelente. Vai fazer falta enorme para a família, para os amigos e para a luta contra a pandemia. Contaminou-se tratando pacientes ou talvez indo para o trabalho. Mas a questão é que, se não houver EPIs para todos, áreas de repouso e alimentação preparadas para o distanciamento social, vamos nos infectar uns aos outros nos hospitais.

Houve erro nas projeções?

Não, estamos vendo o previsto colapso do sistema de saúde e os casos continuam a aumentar. O país fracassou em impedir que os cenários terríveis se materializassem. Manaus é um exemplo, onde uma grande parte dos óbitos ocorre em casa. Não precisamos mais de curvas de projeções de subnotificação, precisamos gerenciar os leitos necessários. Os mortos “batem à nossa porta”, enchem cemitérios, câmaras mortuárias e IMLs.

Por que isso acontece?

A falta de comprometimento com o combate à pandemia gerou uma dicotomia entre economia e saúde. Temos as filas desordenadas na Caixa em busca do benefício muito aquém do necessário e os corpos enterrados em valas comuns em Manaus. Esse quadro mostra que o Brasil passou a praticar uma epidemiologia de corpos. Não há resposta de Estado que priorize a vida.

Como estão suas pesquisas?

Meu lado pesquisador foi subjugado pelo de médico, trabalhando em UTI de Covid-19 e no atendimento de profissionais de saúde com suspeita da doença. Nos plantões, descanso numa poltrona na UTI para não ter que retirar o EPI, já que os pacientes a qualquer momento precisam de nós.

De que armas dispomos?

Pesquisa demanda tempo para desenvolvimento de vacina ou verificação de uma droga redirecionada. O remdesivir oferece um benefício real muito abaixo do esperado, uma redução de letalidade de menos de 3% não modifica o cenário. E hidroxicloroquina, cloroquina e outras drogas ainda não têm eficácia comprovada. Até que tenhamos estudos de eficácia e real impacto devemos ter cuidado com vídeos e áudios de WhatsApp. Entendo a angústia pela busca de solução, mas médicos devem se orientar por fatos e não por desespero.

Como têm sido tratados os pacientes graves de Covid-19?

O que funciona é dar a eles o melhor cuidado possível para que seu próprio corpo consiga reagir. Numa UTI de Covid-19 você tem pacientes ligados a mais de oito bombas infusoras, a máquinas de ventilação e de hemodiálise, pacientes dos quais você não pode desgrudar um segundo. Nas enfermarias também há pacientes em estado grave e que rapidamente se tornam gravíssimos.

E qual o recurso que nos resta?

Lockdown. Não como violência contra a circulação das pessoas, mas como intensificação da redução extrema da mobilidade. É a mesma que em 1918, na gripe espanhola, permitiu que diversas cidades reduzissem o número de mortos e acelerassem a recuperação econômica. O lockdown tem de ser associado à garantia de renda mínima real de suporte às populações, de suporte às empresas para garantia dos empregos. Adotar o lockdown é uma questão de sobrevivência e proteção individual, para que o sistema de saúde possa se reestruturar.