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'É possível ver um Brasil sem bife, mas não sem floresta', diz Jonathan Safran Foer, autor de 'Nós somos o clima'

Escritor americano enfatiza a importância de mudança de hábitos alimentares para a sobrevivência sustentável do planeta
Escritor americano reivindica que população retome hábitos alimentares de 50 anos atrás, ignorando automatização da agricultura contemporânea Foto: Divulgação/Jeff Mermelstein
Escritor americano reivindica que população retome hábitos alimentares de 50 anos atrás, ignorando automatização da agricultura contemporânea Foto: Divulgação/Jeff Mermelstein

RIO - Autor de ‘Nós somos o clima ’, lançado neste mês pela editora Rocco, Jonathan Safran Foer defende mudança nos hábitos alimentares para salvar planeta de caos climático.

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O senhor diz que as pessoas se irritam e ficam na defensiva ao conversar sobre hábitos alimentares, como comer carne, que é o tema de seu livro. A mudança de nossa dieta é fundamental para salvar o planeta?

Sim. Esta medida não é suficiente, mas certamente é indispensável. Os climatologistas podem discordar sobre o peso dela, mas ninguém acredita que deve ser ignorada. Precisamos implementá-la em nosso cotidiano.

Segundo seu livro, a crise do clima não é uma boa história para contar: é abstrata, lenta e não tem personagens e momentos icônicos. Como atrair o público?

Nos últimos anos, começaram a surgir alguns personagens icônicos, como os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro. Por mais que sejam horríveis, ambos estão contribuindo mais para os movimentos ambientais do que qualquer pessoa fez até agora, porque seus absurdos despertaram a conscientização coletiva. Às vezes as coisas precisam ficar ruins antes de melhorar. Finalmente atingimos o fundo do poço, e agora a sociedade já manifestou seu desejo de preservar o meio ambiente. De uma certa forma, este é o mesmo aprendizado que temos com o coronavírus: podemos fazer mudanças profundas em pouco tempo.

Estamos realmente no fundo do poço?

Espero que sim. É difícil pensar em líderes mundiais piores do que Trump ou Bolsonaro. E precisamos levar em conta o surgimento de movimentos globais como o Black Lives Matter e o Me Too. Cada um tem sua pauta, mas a mesma raiz, que é a vontade de viver em um mundo mais justo do que o nosso. Não é uma coincidência que todos estejam surgindo simultaneamente. A luta pela justiça climática também se insere nesse contexto.

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O senhor diz que há quatro coisas que uma pessoa sozinha pode fazer para combater as mudanças climáticas: ter uma alimentação à base de plantas, evitar viajar de avião, abrir mão de carro e ter menos filhos. Acredita que alguma delas acontecerá?

Não haverá futuro sem que todos esses fatores aconteçam. Não peço para que todos sejam erradicados, mas apenas moderação. Estamos em um processo de perda de espécies, de espaços em cidades costeiras, de geleiras. Vamos perder um percentual da Amazônia. Vamos perder pessoas que migram em decorrência da mudança climática. A questão é o quanto vamos tolerar. Não podemos ter tudo e tomar ações destrutivas, como viajar quando quisermos ou comer um alimento qualquer se quisermos manter a qualidade de vida com que nos acostumamos, e sem nos deparar com novas doenças.

De que forma podemos mudar nossa alimentação?

Todos devem seguir as mesmas regras. Pessoas que têm mais recursos para mudar sua alimentação precisam assumir mais obrigações. Um estudo publicado na revista Nature em 2018 analisou o sistema alimentar em diversos países e viu que os animais devem fazer parte da dieta dos locais onde não há muitas opções de comida. Por outro lado, americanos, europeus e até habitantes de algumas regiões do Brasil devem cortar 90% de seu consumo de carne e 60% de laticínios.

O Brasil é um país com uma grande área destinada ao gado e dieta rica em proteína animal. O que o mundo deve esperar de nós ?

Acho maravilhoso que um país tenha sua cultura culinária. Não defendo que o Brasil feche suas churrascarias, mas não podemos esquecer que 90% das queimadas na Amazônia estão ligadas à agropecuária. É possível ver um Brasil sem bife, mas não sem a floresta, que está sendo desmatada, ou sem o Rio de Janeiro, que, como outras cidades costeiras, pode se tornar inabitável.

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O que o senhor quer dizer quando chama a agricultura animal contemporânea de cruel e capaz de provocar efeitos sociais e médicos sem precedentes?

Precisamos analisar o que aconteceu com nossa alimentação nos últimos 50 anos. As fazendas industriais não existiam àquela época, mas hoje controlam 99,9% do que comemos nos EUA. Os fazendeiros eram boas pessoas, que cuidavam de seus animais e de suas terras. Agora, o mercado é comandado por pessoas que não estão no campo e dão antibióticos para que os animais cresçam artificialmente. Na agricultura contemporânea, a crueldade não é um acidente — ela faz parte do modelo de negócio, assim como o impacto ambiental.

Defendo nosso retorno à alimentação de 50 anos atrás. Sei que a criação de animais exige um grande consumo de calorias e terras para criação — então, para compensar, devemos comer muito menos do que atualmente. Precisamos tirar o dinheiro do modelo industrial e destiná-lo aos fazendeiros reais, aqueles com quem você pode conversar em um mercado. Infelizmente, com a automatização, eles são cada vez mais raros. Nos EUA, temos menos fazendeiros do que na época da Guerra Civil (1861-1865), sendo que a população cresceu 11 vezes neste período.

O coronavírus pode ser integrado à discussão sobre os hábitos alimentares e a mudança do clima?

Há uma relação que nos diz algo sobre a psicologia humana: a nossa habilidade de mudar. Há uma diferença, eu acho, que é um certo egoísmo. Quando falamos sobre coronavírus, estamos mais preocupados conosco. Ninguém faria isolamento social, fecharia comércio ou lavaria as mãos se a ameaça não estivesse entre nós.

Já o aquecimento global não desperta a mesma comoção. Eu e você não morreremos por causa das mudanças do clima. Mas precisamos fazer com que outras pessoas tenham empatia para pensar no futuro de quem mora em outros lugares.

O coronavírus despertou muitas pessoas sobre a nossa fragilidade e a necessidade de fazer escolhas difíceis. Eu nunca como carne, mas gostaria muito. Eu não acho a carne nojenta e não vou condenar quem come. Mas, para nos salvar das mudanças do clima, precisamos ser cidadãos responsáveis e fazer escolhas difíceis.