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Cidade de Aurélio, criador do dicionário, não tem nem professor de português

A Fachada da Escola Estadual Ambrósio Lira, onde Aurélio Buarque de Hollanda estudou e ensinou português até 1933 - Odilon Rios
A Fachada da Escola Estadual Ambrósio Lira, onde Aurélio Buarque de Hollanda estudou e ensinou português até 1933 - Odilon Rios

PASSO DE CAMARAGIBE (AL) - Foi em Passo de Camaragibe, no Litoral Norte alagoano, a 89 quilômetros de Maceió, que nasceu Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, um dos maiores estudiosos da língua portuguesa, o homem que dá nome ao dicionário mais famoso do Brasil. No ano em que o país estreia a reforma ortográfica, Aurélio, se estivesse vivo, faria 99 anos. Mas, em Passo de Camaragibe, poucos ouviram falar dele. E quase ninguém sabe que, desde o último dia 1º, a forma de escrever algumas palavras mudou no país. O agricultor Josuel Matilde dos Santos, de 62 anos, nunca foi à escola. Só aprendeu a escrever o nome, conta. Não sabe sobre a reforma, sobre Aurélio, ou o que é um dicionário:

( Confira o que muda com o acordo ortográfico )

- Vamos ali conversar com seu Porfírio. Quem não sabe procura quem sabe.

Edgar Porfírio dos Santos, de 84 anos, fez a 4ª série. Não lê, mas gosta de falar bem e pausado. Sentado em um banco na porta de casa, com as pernas cruzadas e o olhar firme, faz uma viagem no tempo com dedos em riste:

- Já ouvi muito falar do Aurélio. Era um rapaz inteligente, as pessoas de posição aqui de Passo falavam de uma boca só: era um servidor exemplar.

E a reforma ortográfica?

- Não resolve nada. Um vai dizer uma coisa, o outro vai dizer outra. Uma confusão. É como a política.

Na cidade onde nasceu o homem que tem seu nome associado à língua e ao saber, 2.730 dos 13.826 habitantes não sabem ler nem escrever, segundo o IBGE. A maioria (9.029 pessoas) frequentou a escola por sete anos, ou seja, nem chegou ao ensino médio. Apenas quatro têm curso superior. Mais da metade da população vive com até um salário mínimo por mês.

Aurélio Buarque de Hollanda teve mais sorte. Mudou-se de Passo para Maceió aos 23 anos, quando começou a dar aulas de português. Passou por várias escolas, fez magistério e, chegando ao Rio em 1938, tornou-se contista, ensaísta, crítico literário, filólogo e tradutor, antes de se dedicar ao seu estudo mais complexo sobre a língua portuguesa: organizar um dicionário, o "Aurélio".

Nenhuma referência ao filho ilustre nas ruas de Passo

Nas ruas de Passo não se vê qualquer referência ao filho ilustre. A casa onde Aurélio nasceu foi demolida, e não há registro sobre sua localização. Os logradouros têm nomes de políticos ou da família Maranhão, dona há 300 anos de uma usina de açúcar que move a economia local. No pátio da Escola Estadual Ambrósio Lira, onde Aurélio estudou e ensinou português, uma centenária jaqueira é a resistência ao esquecimento:

- O Aurélio ficava aqui todos os dias, no recreio. Lia seus livros debaixo desta árvore - conta o diretor da escola, Mastson José de Paula.

A escola, com 970 alunos, enfrenta problemas maiores que a adaptação à reforma ortográfica. A maioria dos professores não tem curso superior. Pela Lei de Diretrizes e Bases, nem poderiam dar aulas.

- Aqui não tem professor de português, matemática, história. A gente ajuda - diz a professora de história Maria de Fátima Mariano, que tem o ensino médio.

- Os alunos ficam por causa dos benefícios do governo federal. Por isso a taxa de evasão é pequena. Mas as drogas começam a chegar - diz o diretor.

Júlio Joaquim, de 20 anos, está na 6ª série, depois de repetir "várias vezes, até perder a conta".

- Português, não gosto. Ouvi falar do Aurélio, mas dessa reforma ortográfica não quero nem saber. Falou em português, eu corro - admite, completando: - Mas não ter nada na cidade sobre ele é muito triste.

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